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Pablo Arantes

Pablo Arantes é doutor em linguística pela Unicamp

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Mesmo preso, Lula é quem melhor se comunica no país

Professor da Universidade Federal de São Carlos, o foneticista Pablo Arantes afirma que na cena política brasileira, tanto hoje como ontem, quem se comunica com proficiência diferenciada ainda é o ex-presidente Lula; ele diz: "a declaração do ex-presidente Lula sobre o processo que culminou na sua ausência ao sepultamento do irmão: 'não deixaram que me despedisse do Vavá por pura maldade' [mostra] alguém que se expressa através de valores (...) Daí seu 'perigo' [para o sistema engessado e interditado de comunicação]"

Mesmo preso, Lula é quem melhor se comunica no país (Foto: Ricardo Stuckert/ Instituto Lula)
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Em tempos de guerra híbrida, o discurso público é tomado por estratégias não convencionais de comunicação. Fala-se em "firehosing", "fake news", pós-verdade, em notícias que são soterradas por outras.

A relação entre sinal e ruído parece entrar em terreno negativo. Algum norte nesse cenário pode vir da leitura do livro do linguista e cientista cognitivo estadunidense George Lakoff chamado "Don't think of an elephant: know your values and frame the debate", que, em tradução livre, poderia ser "Não pense em um elefante: conheça seus valores e paute o debate".

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O livro foi originalmente publicado em 2004 e reeditado em 2014 para, nas palavras do autor, ser um guia para o cidadão ativista. Um bom exemplo de intelectual transformando seu trabalho em intervenção no debate público. E de alguém que se coloca claramente em um campo, o progressista. Não é um "isentão".

A tese que Lakoff apresenta ao leitor articula-se em torno de dois pressupostos. O primeiro é que identidade política se faz em termos de valores morais - aquilo que consideramos certo ou errado é instrumental para definir nossas disposições.

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O segundo é um pressuposto cognitivo com implicações linguísticas: as pessoas não lidam diretamente com o mundo, essa relação é intermediada por esquemas mentais que simplificam a complexidade do mundo.

Essa noção abstrata de um esquema mental que em alguma medida formata nossa relação com o mundo, enfatizando porções dele e tirando outras do nosso foco de atenção, ganha, na teoria formulada por Lakoff, o nome de "frame". A literatura científica brasileira não traduz o termo, mas "quadro" ou "moldura" são traduções que capturam aspectos importantes do sentido do original.

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Os frames são estruturas mentais, não têm existência concreta. Interagimos com eles a partir da maquinaria da linguagem. É nesse ponto que podemos retomar o elefante mencionado no título do livro. A ideia aqui é que se digo "Não pense em um elefante", a presença dos sons que evocam o significado "elefante" ativa o frame a que "elefante" está associado (pensamos, por exemplo, em orelhas grandes, tromba, em presas de marfim, na paisagem em que um elefante vive e, eventualmente, até em um rato, a nêmesis do elefante).

Por mais que a ordem seja não pensar no elefante, o frame é ativado de forma não consciente antes que se possa suprimi-lo por um ato de vontade. Ativação, nesse sentido, não é metáfora, ela pode ser medida objetivamente por meio de experimentos psicolinguísticos. Há muita literatura que mostra que lidamos de forma diferente com palavras que ouvimos mais ou menos frequentemente.

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O poder da linguagem de presentificar conceitos abstratos importa para a questão do debate político porque, nas palavras de Lakoff, "precisamos de linguagens novas para frames novos. Pensar diferente requer falar diferente". O ponto do autor é que os progressistas precisam falar "progressivamente", isto é, devem usar frames compatíveis com os valores que defendem para que esses valores sejam evocados e tornem-se moeda corrente no debate.

Desse ponto, o autor tira uma diretiva: não discuta com os "de lá" usando a linguagem deles. Dando novamente a palavra a Lakoff, "quando você discute com gente do outro lado usando a linguagem e os frames deles, você está ativando os frames deles, reforçando esses frames para quem está ouvindo a conversa e enfraquecendo seus próprios valores".

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Lakoff apresenta exemplos da armadilha de usar a linguagem "do lado de lá" ao discutir temas que dividem o mundo em dois. Alguns dos temas de que ele trata não são comuns no nosso contexto, mas adapto um exemplo.

Na fala dos conservadores brasileiros, a expressão "rombo da previdência" é onipresente. A agenda, sabemos, é clara - precarização e, havendo votos suficientes no congresso, privatização. A questão é que, do lado de cá, a defesa da seguridade social passa, entre outras estratégias, pela negação da existência de "rombo".

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Agora já sabemos o problema dessa estratégia. Ao dizer "não pense em rombo da previdência", ativa-se no discurso, mesmo que pela negativa, o frame de um sistema falho, sem planejamento, afetado pela corrupção. "Rombos" são abertos e ninguém faz nada? Levar a sério a ideia segundo a qual a experiência é resultado de um enquadramento do "mundo real" gera um corolário: fatos fazem sentido dentro de narrativas.

Se o frame que domina o discurso é o do "rombo", é inevitável que pensemos na imagem de um navio cujo casco tem "rombos". Que estatísticas e considerações podem salvar o Titanic? Quem se disporia a defender uma instituição apresentada nesses termos?

A sugestão de Lakoff para sair da armadilha é mudar o frame, refazer a discussão de maneira a ativar os frames que engajam os progressistas; colocar a questão dos valores em primeiro plano e criar uma narrativa a partir deles.

Por conta da relação fundamental entre moral e política, o autor aponta uma tarefa importante para o campo progressista: saber quais são os valores fundamentais que movem as pessoas "do lado de cá". Muitos desses valores não são crenças conscientes. É preciso torná-las conscientes e repeti-las até que entrem no debate público corriqueiro. A ideia é pensar e falar em termos de valores.

Os progressistas não são os únicos a caírem na armadilha de usar a linguagem do adversário. Quando o atual ocupante da cadeira de ministro da Educação disse que a "universidade não é para todos", trouxe para o debate o frame da inclusão, que foi a grande bandeira das gestões de Lula, Dilma e Haddad na educação superior. Evocou para negar.

O episódio gerou desgaste. Mesmo entre os conservadores, quantos diriam que ter ampliado o acesso à universidade foi uma coisa fundamentalmente ruim? Opor-se à inclusão é ser flagrado defendendo aquilo que grande parte das pessoas, independente de simpatia política, classificaria como maldade.

Há ainda outras coisas a falar sobre o livro de Lakoff, principalmente a respeito das fontes dos valores morais que guiam progressistas e conservadores. Ficam para outro texto. Termino dizendo algo sobre o bem e o mal.

Não sei quanto Lakoff conhece da vida e dos personagens da política brasileira. Mas imagino que ele balançaria a cabeça em aprovação ao ler a declaração do ex-presidente Lula sobre o processo que culminou na sua ausência ao sepultamento do irmão: "não deixaram que me despedisse do Vavá por pura maldade". Está aí alguém que se expressa através de valores, imagino que nosso autor diria. Daí seu perigo, digo eu.

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