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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Michael Hudson: um roteiro para escapar ao domínio asfixiante do Ocidente

"O caminho para superar a ordem neoliberal é repleto de perigos, mas a recompensa de um sistema alternativo é tão promissora quanto urgente", diz Pepe Escobar

Michael Hudson (Foto: Reprodução/YouTube)
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É impossível fazer um quadro da turbulência geoeconômica inerente às "dores do parto" de um mundo multipolar sem a ajuda das ideias do Professor Michael Hudson, da Universidade de Missouri, autor do já seminal The Destiny of Civilization (O Destino da Civilização).

Em seu último ensaio, o Professor Hudson examina em profundidade as políticas econômico-financeiras suicidas da Alemanha, bem como seus efeitos no euro já em queda, além de sugerir algumas possibilidades para uma integração mais acelerada da Eurásia e do Sul Global como um todo, na tentativa de romper o domínio sufocante do Hegêmona.

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Isso levou a uma série de trocas de e-mail, em especial sobre o futuro do yuan, sobre o qual Hudson comentou:

"Os chineses, com quem venho conversando há muitos anos, não esperavam um enfraquecimento do dólar. Eles não estão chorando porque o dólar subiu, mas se preocupam com a fuga de capitais da China, uma vez, segundo creio, depois do Congresso do Partido [que começa em 16 de outubro] haverá um forte combate à defesa do livre-mercado que ocorre em Xangai. As pressões a favor das mudanças iminentes vêm se avolumando há tempos. O espírito reformista que visa a refrear os "livre-mercados" já vem ganhando força há mais de uma década entre os estudantes, que agora vêm subindo na hierarquia do Partido". 

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Sobre o importante ponto de a Rússia aceitar pagamentos por energia em rublos, Hudson tocou em um ponto que raramente é examinado fora da Rússia: "O que eles realmente querem não é apenas serem pagos em rublos. Rublos são algo de que os russos não precisam, uma vez que podem simplesmente imprimi-los. Eles só precisam de rublos para equilibrar seus pagamentos internacionais e estabilizar a taxa de câmbio – não para valorizá-lo.”

O que nos leva aos pagamentos em yuan: "Aceitar pagamentos em yuan é como aceitar pagamentos em ouro – um ativo internacional que todos os países cobiçam como uma moeda não-fiduciária que tem valor ao ser vendida (ao contrário do dólar, que hoje pode simplesmente ser confiscado ou, em último caso, abandonado). O que a Rússia realmente precisa são insumos de importância crítica, como chips de computador. Ela poderia pedir à China que os importasse com os yuans fornecidos pela Rússia". 

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Keynes está de volta

Após nossa troca de e-mails, o Professor Hudson gentilmente concordou em responder em detalhes algumas perguntas sobre os processos geoeconômicos extremamente complexos que estão em jogo por toda a Eurásia. Aqui vamos nós:  

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The Cradle: Os BRICS vêm examinando a adoção de uma moeda comum – incluindo todos os países, esperamos, inclusive o BRICS+ expandido. Como isso poderia ser implementado na prática? É difícil imaginar o Banco Central do Brasil se harmonizando com os russos e o Banco Popular da China. Isso envolveria apenas investimentos – através do banco de desenvolvimento dos  BRICS? Ou seria baseado em commodities + ouro? Como o yuan se encaixaria nesse sistema? O enfoque dos BRICS seria embasado nas discussões recentes no âmbito da União Econômica Eurasiana (UEEA) com os chineses, conduzidas por Sergey Glazyev? A cúpula de Samarcanda, em termos práticos, teria contribuído para a interconexão dos BRICS e da OCX?

Hudson: "Qualquer ideia de uma moeda em comum teria que partir de um acordo de troca de moedas entre os atuais países-membros. A maior parte do comércio será feita em suas próprias moedas. Mas para acertar os inevitáveis desequilíbrios (superávits e déficits de balança de pagamentos), uma moeda artificial será criada por um novo Banco Central. 

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Essa proposta, superficialmente, talvez se assemelhe aos Direitos Especiais de Saque (DESs) criados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em grande medida para custear o déficit dos Estados Unidos na conta militar e o crescente serviço da dívida dos tomadores do Sul Global e credores dos Estados Unidos.  Mas o sistema será muito mais semelhante ao 'bancor' proposto por John Maynard Keynes em 1944. Os países deficitários poderiam sacar uma cota especificada de bancors, cujo valor seria determinado por uma seleção em comum de preços e taxas de câmbio. Os bancors (e a moeda dos próprios países) seriam usados para pagar os países superavitários.

Mas, diferentemente do sistema DES do FMI, o objetivo desse novo Banco Central alternativo não será apenas o de subsidiar a polarização econômica e o endividamento. Keynes propôs um princípio de que se um país (ele, à época, estava pensando nos Estados Unidos) mantivesse superávits crônicos, seria devido a seu protecionismo ou à sua recusa de apoiar uma economia mutuamente resiliente, e suas solicitações começariam a ser extintas, juntamente com as dívidas em bancor de países cujas economias prejudicavam sua capacidade de equilibrar seus pagamentos internacionais e apoiar suas moedas.  

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O sistema hoje sendo proposto apoiaria de fato os empréstimos tomados entre os membros do banco, mas não com o propósito de facilitar fugas de capital (o principal objetivo dos empréstimos do FMI, sempre que havia probabilidades de governos "de esquerda" serem eleitos), e o FMI e sua alternativa associada, o Banco Mundial, não imporiam planos de austeridade e políticas anti-trabalhistas aos devedores. A doutrina econômica promoveria autossuficiência no setor de alimentos e produtos básicos, bem como formação tangível de capitais agrícolas e industriais, e não a financialização. 

É provável que o ouro também venha a ser um elemento das reservas monetárias internacionais desses países, simplesmente porque se trata de uma commodity que, como ficou demonstrado por séculos de prática em todo mundo, é aceitável e politicamente neutra. Mas o ouro seria um meio aceitável de acertar os balanços de pagamentos, não de definir a moeda interna. Esses balanços, é claro, se estenderiam ao comércio e aos investimentos com países ocidentais que não fazem parte desse banco. O ouro seria um meio aceitável ao novo banco centrado na Eurásia de acertar os balanços da dívida ocidental.  Ele mostraria ser um veículo de pagamentos que os países ocidentais simplesmente não poderiam repudiar – contanto que o ouro permanecesse nas mãos dos membros do novo banco, e não mais em Nova York ou Londres, como vem sendo a perigosa prática em vigor desde 1945. 

Em uma reunião voltada à criação desse novo banco, a China ocuparia uma posição de dominância semelhante à ocupada pelos Estados Unidos em 1944, em Bretton Woods. Mas sua filosofia operacional seria bem diferente. O objetivo seria o de desenvolver as economias dos membros do banco, com planejamento de longo prazo ou padrões de comércio que pareçam adequados a suas economias, a fim de evitar o tipo de relações de dependência e as aquisições privatizantes que caracterizaram as políticas do FMI e do Banco Mundial. 

Esses objetivos de desenvolvimento incluiriam reforma agrária, reestruturação industrial e financeira, reforma tributária, bem como reformas dos setores bancários e de crédito nacionais.  Debates ocorridos nas reuniões da OCX parecem ter preparado o terreno para o estabelecimento de uma harmonia geral de interesses na criação desse tipo de reformas. 

Eurásia ou nada

The Cradle: No médio prazo, seria praticável esperar que os industriais alemães, contemplando a devastação que vem por aí e sua própria aniquilação, se revoltem em massa contra as sanções comerciais e financeiras impostas à Rússia pela OTAN e forcem Berlim a abrir o Nord Stream 2? A Gazprom garante que o gasoduto é  passível de conserto. Não é necessário se juntar à OCX para fazer com que isso aconteça... 

Hudson: "É pouco provável que os industriais alemães tomem medidas no sentido de evitar a desindustrialização de seu país, dados o domínio férreo que os Estados Unidos/OTAN exercem sobre a política da Eurozona e os 75 anos de interferência política por parte de autoridades americanas. É mais provável que os diretores das empresas alemãs tentem sobreviver com o máximo possível de sua riqueza pessoal e empresarial intacta, enquanto a Alemanha é convertida em uma ruína econômica como a dos estados Bálticos.

Já se falou de transferir a produção – e a administração – para os Estados Unidos, o que impedirá que a Alemanha de obter energia, metais e outros materiais essenciais de um fornecedor que não seja controlado pelos interesses dos americanos e de seus aliados. 

A grande questão é se as empresas alemãs emigrariam para as novas economias eurasianas, cujo crescimento industrial e prosperidade provavelmente ultrapassam de longe os dos Estados Unidos. 

É claro que os gasodutos do Nord Stream são passíveis de reparos. É precisamente por essa razão que as pressões políticas do Secretário de Estado Blinken insistem tanto em que a Alemanha, a Itália e outros países europeus redobrem seus esforços no sentido de isolar suas economias do comércio e dos investimentos com a Rússia, Irã, China e outros países cujo crescimento os Estados Unidos vêm tentando prejudicar".

Como escapar ao "Não há alternativa"

The Cradle: Será que estaríamos chegando ao ponto em que os principais atores do Sul Global – mais de 100 nações – finalmente conseguiriam se organizar e decidir partir para o tudo ou nada para fazer com que os Estados Unidos parem de manter a artificial economia neoliberal global em um estado de coma perpétuo? O que significa que a única opção possível, como você sugeriu, é estabelecer uma moeda global paralela que deixe de lado o dólar americano – enquanto os suspeitos de sempre sugerem a ideia de um Bretton Woods III, na melhor das hipóteses.  Seria o cassino financeiro FIRE (em inglês, finanças, seguros e propriedades imobiliárias) onipotente o bastante para esmagar qualquer possível concorrência? Você consegue imaginar outros mecanismos práticos além daqueles que vêm sendo discutidos nos BRICS/ UEEA/OCX? 

Hudson: "Há mais ou menos um ano, parecia que a tarefa de projetar uma moeda mundial alternativa e segura, bem como um sistema monetário, de crédito e de comércio, era tão complexa que seria impossível pensar em todos os detalhes. Mas as sanções dos Estados Unidos mostraram ser o catalizador necessário para tornar pragmaticamente urgentes essas discussões. 

O confisco das reservas de ouro da Venezuela em Londres, bem como dos investimentos venezuelanos nos Estados Unidos; o confisco de 300 bilhões das reservas cambiais russas mantidas nos Estados Unidos e na Europa; e a ameaça de vir a fazer o mesmo com a China e outros países que resistem a política externa norte-americana tornaram urgente a desdolarização. Já expliquei essa lógica e seus diversos pontos, primeiramente em meu artigo para o Clube Valdai (com Radhika Desai) e mais recentemente em meu livro The Destiny of Civilization, e na série de palestras que preparei para Hong Kong e para a Universidade Global de Sustentabilidade.

Manter ações denominadas em dólares, ou mesmo ouro ou investimentos nos Estados Unidos e na Europa deixou de ser uma opção segura. Está claro que o mundo está se cindindo em dois tipos bem diferentes de economia, e que os diplomatas americanos e seus satélites europeus estão dispostos a demolir a ordem econômica existente na esperança de gerar uma crise avassaladora que os capacite a se manter em posição de domínio. 

Também está claro que a subjugação ao FMI e a seus planos de austeridade são suicídio econômico, e que seguir o Banco Mundial e sua doutrina neoliberal de dependência  internacional é autodestrutivo. O resultado foi o de criar uma sobrecarga de dívidas denominadas em dólares americanos. Essas dívidas não podem ser pagas sem a tomada de empréstimos do FMI e a aceitação de termos de rendição econômica aos privatizadores e especuladores americanos.

A única alternativa a impor a si próprio austeridade econômica é retirar-se da cilada do dólar, na qual a economia do "livre-mercado" patrocinada pelos Estados Unidos (mercados livres da proteção governamental e livres da capacidade do governo de recuperar os danos ambientais causados pelas empresas petrolíferas americanas, pelas empresas mineradoras e a dependência alimentar e industrial daí derivada) é um rompimento definitivo.  

Esse rompimento será difícil, e a diplomacia americana fará tudo o que estiver a seu alcance para evitar a criação de uma ordem econômica mais resiliente. Mas a política dos Estados Unidos criou um estado global de dependência, no qual, literalmente, não há alternativa a não ser o rompimento total". 

Alexit?

The Cradle: Como você analisa a confirmação pela Gazprom de que a Linha B do Nord Stream 2 não foi atingida pelo Terror dos Gasodutos? Isso significa que o Nord Stream 2 está praticamente pronto a entrar em funcionamento – com a capacidade de bombear  2.5 bilhões de metros cúbicos de gás ao ano, o que representa a metade da capacidade total do  Nord Stream danificado. A Alemanha, portanto, não está condenada. Isso abre um capítulo totalmente novo, e a solução só dependerá de uma decisão política séria do governo alemão.   

Hudson: "Só tem um problema: a Rússia certamente não irá arcar com os custos, novamente, só para ver o gasoduto explodido mais uma vez. Isso caberá à Alemanha. Aposto que o atual regime dirá "não". Isso deve dar margem a uma interessante ascensão de partidos alternativos. 

O grande problema é que a única maneira de a Alemanha restabelecer relações comerciais com a Rússia é retirar-se da OTAN, ao se dar conta de que ela é a maior vítima da guerra da OTAN. O que só teria êxito caso a Itália e a Grécia façam o mesmo (a Grécia tem problemas com a OTAN, a quem acusa de não protegê-la contra a Turquia, com relação a Chipre). Parece que essa vai ser uma longa luta. 

Talvez seja mais fácil para a indústria alemã simplesmente se transferir para a Rússia para ajudar a modernizar sua produção industrial, especialmente a BASF, na área química, a Siemens, na engenharia.  Se as empresas alemãs se transferirem para os Estados Unidos em busca de gás,  essa decisão será vista como um ataque americano à indústria alemã, uma vez que os americanos irão se apoderar de seus escalões diretivos. Mas essa opção não terá sucesso, dada a economia pós-industrializada dos Estados Unidos.  

A indústria alemã, portanto, só poderá se deslocar para o Leste se criar seu próprio partido político como um partido nacionalista anti-OTAN. A constituição da União Europeia, que coloca os interesses da OTAN em nível federal em primeiro plano, exigiria que a Alemanha se retirasse da União Europeia. O próximo cenário é discutir a entrada da Alemanha na OCX. Façamos nossas apostas sobre quanto tempo isso irá levar".  

 

 

Tradução de Patricia Zimbres

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