Milicianos do mercado
Os serviços de comunicação constituem outro exemplo de como os capitalistas modernos enriquecem sem fazer força
É sempre um aprendizado ler o economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP. Seu pequeno grande livro “Resgatar a Função Social da Economia – Uma Questão de Dignidade Humana” (Outras Palavras / Elefante, 2022) é primoroso ao descrever, para especialistas ou leigos, como o capitalismo evoluiu para a hegemonia do rentismo. Não é necessário empregar, produzir e comercializar para ver a fortuna crescer – basta manejar os recursos e esquecer que seres humanos encontram-se na ponta.
Este exemplo é seminal: “Eu, em São Paulo, pago duzentos reais pelo dia de trabalho da minha faxineira. Ela tem problemas de saúde e, com a fragilização do SUS, passou a pagar um plano privado. No caso, o grupo financeiro que controla esse plano de saúde tem a BlackRock como acionista. Ou seja, parte do dinheiro que pago para minha faxineira vai contribuir para os acionistas da BlackRock em alguma parte do planeta”.
Dowbor não nos conta nenhuma novidade, mas trata a questão, complexa, com cativante clareza. No capitalismo atual, os indivíduos são obrigados a pagar “pedágios financeiros”, ensina o professor. A prática assemelha-se, na essência, às extorsões milicianas.
“O dinheiro virtual permite a apropriação de fragmentos de praticamente todas as atividades econômicas por meio de pedágios financeiros. No Brasil – onde antigamente o dinheiro saía do bolso do cliente diretamente para o caixa do comerciante –, hoje, com o pagamento por cartão de crédito, o banco drena cerca de 5% do valor da compra, uma tarifa, sem produzir nada. Na modalidade ‘débito’, o dreno é da ordem de 1,5%”, escreveu Dowbor.
Os serviços de comunicação constituem outro exemplo de como os capitalistas modernos enriquecem sem fazer força. Paga-se valor considerável por acesso à internet, linha de celular e canais de TV, tudo nas mãos de um oligopólio de operadoras. Note-se que nós, usuários desses serviços, não compramos nada: pagamos para ter acesso. Conforme explica Ladislau Dowbor, os custos para as empresas “são ridículos se comparados aos preços cobrados”, pois realizam apenas retransmissão de sinais.
Os “traders”, negociadores de ativos financeiros, buscam lucrar com a variação de preço dos ativos – essa é sua natureza essencial. Os alimentos que comemos estão sujeitos a esses especuladores. Dowbor: “Um relatório da Oxfam mostra como quatro gigantes corporativos – Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, conhecidas como as companhias ABCD – controlam até 90% do comércio global de grãos, levando à financeirização tanto da comercialização de commodities quanto da produção agrícola”.
Citada por Dowbor, Sophia Murphy, em “Cereal Secrets: The World’s Largest Grain Traders and Global Agriculture” (Oxfam, 2012), expôs: “Os traders têm sido essenciais na transformação da produção de alimentos num negócio complexo, globalizado e financeirizado. O preço dos alimentos, o acesso a recursos escassos como terra e água, a mudança climática e a segurança alimentar são todos impactados pelas atividades dos traders”.
Disso conclui-se que o aumento do preço da comida paga dividendos aos acionistas das companhias ABCD. Essa selvagem relação explica em parte a inflação, normalmente atribuída ao consumo da classe média e até à queda do desemprego. Professor Dowbor mata a charada: “A inflação não é um fenômeno natural, em que os preços ‘sobem’: na raiz, alguém os eleva; e, no caso, o oligopólio pode elevá-los sem medo de concorrência, sem qualquer justificativa. A lei da oferta e da procura, sempre mencionada, tem um papel secundário. Os preços sobem e os lucros explodem. São opções políticas, baseadas em poder de ‘mercado’. Faz tempo que não estamos na era de Adam Smith”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

