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Marcia Carmo

Jornalista e correspondente do Brasil 247 na Argentina. Mestra em Estudos Latino-Americanos (Unsam, de Buenos Aires), autora do livro ‘América do Sul’ (editora DBA).

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“Minha missão é defender a democracia”, diz Marcelo Rubens Paiva em Buenos Aires

‘Ele acha que a ditadura e o oito de janeiro não podem cair no esquecimento’

“Minha missão é defender a democracia”, diz Marcelo Rubens Paiva em Buenos Aires

O auditório estava lotado. As poltronas do cinema não foram suficientes e muitos sentaram no chão para assistir ao filme ‘Ainda estou aqui’ (Aún estoy aqui), de Walter Salles. O ‘Cinema pela Identidade’, que fica na sede da entidade de direitos humanos Avós da Praça de Maio, foi o lugar de exibição da obra brasileira, baseada no livro de Marcelo Rubens Paiva.

A sede da entidade fica em um dos pavilhões de paredes brancas que serviram de centros de tortura durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Em cada um deles, em meio a várias árvores e ao som de passarinhos,  estão pintados os rostos das vítimas daquelas atrocidades. Uma pintura em um dos muros ressalta: ‘30 mil desaparecidos’.

O lugar é imenso. Seria impossível que da rua ouvissem os horrores que aconteciam ali naqueles anos de chumbo.

Memória, ‘Ainda estou aqui’ e ‘Feliz Ano velho’ - As imagens de algumas das vítimas nas paredes são em preto e branco. O tempo não apagou aqueles rostos e a memória da ditadura argentina. A ex-Escola de Mecânica da Marinha (ESMA) é hoje o Espaço Memória e de Direitos Humanos e, apesar de estar a cerca de 40 minutos do centro de Buenos Aires, atraiu público ávido para ouvir as palavras de Marcelo Rubens Paiva.

Muitos deles levaram os livros ‘Ainda estou aqui’ e ‘Feliz Ano Velho’ em busca de autógrafo do autor. Eram filhas e filhos, netas e netos de desaparecidos políticos, e também estudantes que pesquisam sobre as ditaduras, professores e outras pessoas curiosas para saber mais sobre a história de Marcelo e dos 21 anos de autoritarismo no Brasil (1964-1985) e do Brasil atual.

“Difícil não se emocionar” - Quando o filme terminou, o autor entrou no palco. Foi longamente aplaudido. No  telão ainda eram exibidas as fotos da família Paiva que aparecem antes do fim da película. Ele ouviu os aplausos em silêncio. Difícil não se emocionar. Pela história do Brasil e de Eunice, pelo filme, pela presença de Marcelo, pelo lugar onde a obra acabava de ser transmitida. Logo depois, o escritor disse à platéia que ia ler um texto de duas páginas que escreveu, em espanhol, com a ajuda do ChatGPT (inteligência artificial). Sorrisos do público. Enquanto ele lia as duas páginas de papel ofício, o público ficou ainda mais compenetrado. Ele falou sobre Eunice, sobre o pai, o ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e torturado na ditadura militar brasileira em 1971, sobre o Oscar de melhor filme estrangeiro para Ainda estou aqui e contou que o título da sua obra foi de uma frase da mãe quando já estava com Alzheimer.

“Eu tenho uma missão” - Quando perguntado sobre como conseguiu relatar o que sua família e ele viveram, apesar da perda do pai e da emoção, ele respondeu: “Eu tenho uma missão. Defender a democracia”. A platéia silenciosa o ouviu com atenção. Marcelo falou sobre a mãe: “O legado da minha mãe foi converter a dor em luta. Sem se fazer de vítima e com a força do ativismo”. Ao seu lado estava o argentino Manuel Gonçalves Granada, que somente depois dos 20 anos de idade recuperou a sua verdadeira identidade, a partir de exame de DNA e graças às iniciativas das Avós da Praça de Maio (Abuelas de Plaza de Mayo).

“Neto 57” - Ele foi o neto 57 a ter a identidade recuperada. O pai dele, Gastón Roberto José Gonçalves, tinha 26 anos de idade, quando foi sequestrado no dia do golpe militar na Argentina, em 24 de março de 1976. A mãe de Manuel foi sequestrada em novembro daquele mesmo ano. Manuel sobreviveu porque ela o escondeu em um armário e ele acabou criado por outra família. Seu pai e sua mãe foram assassinados pelos ditadores.
Manuel tinha acabado de chegar do Chile antes do encontro com Marcelo, promovido pela entidade Avós da Praça de Maio e pela embaixada do Brasil em Buenos Aires. Hoje, Manuel tem como missão viajar para outros países para transmitir a experiência da entidade na localização dos bebês apropriados – hoje com mais de 40 anos de idade – e ajudar na construção dos mesmos princípios de direitos humanos além fronteiras.

Eunice, as Mães e as Avós da Praça de Maio - Ao lembrar a importância das Mães e das Avós da Praça de Maio, Manuel disse: “Os homens cometeram os horrores e as mulheres tomaram iniciativas para reparar (humanizar) a situação. São as mulheres que têm a fortaleza e o amor”. 

Nas paredes da sede das Avós no Espaço da Memória, no bairro de Nuñez, em Buenos Aires, uma frase, porém, diferencia as trajetórias de luta das líderes argentinas e Eunice. As Avós surgiram como um grupo na luta para localizar seus netos que nasceram nos cativeiros do autoritarismo. Eunice travou uma batalha solitária. Mas, como elas, e como observou Marcelo, se reinventou em busca da verdade e da justiça.

Brasil e Argentina, caminhos diferentes - Na sua fala, o autor de ‘Ainda estou aqui’ lembrou que o Brasil implementou a anistia em 1979. Aquele ato não foi compartilhado na Argentina, que realizou o julgamento das cúpulas militares logo depois da retomada da democracia, no governo de Alfonsín, em 1983. Já no governo de Nestor e de Cristina Kirchner, neste século, os julgamentos e prisões foram retomados, ampliados, e as Avós localizaram, até agora, o neto 140. Mas estima que muitos outros ainda vivam com suas identidades apropriadas, sem saber a sua verdadeira história e a de seus pais, alvos da ditadura.

Bolsonaro, os generais e o ‘8 de janeiro’ - Na sua fala, Marcelo Rubens Paiva trouxe o debate para o presente ao lembrar que pela primeira vez na história democrática brasileira generais, como Augusto Heleno, por exemplo, foram presos. E que o ex-presidente Bolsonaro, que defendeu a ditadura e ditadores, também está atualmente no cárcere. Que o oito de janeiro não ficou impune. E recordou o fato que os brasileiros também não deveriam esquecer – que na pandemia 700 mil pessoas morreram e que contaram com o descaso do então presidente.

Lágrimas inesperadas em nome de muitos - Quando o encontro quase terminava, uma paraguaia com a bandeira do seu país nos ombros levantou da primeira fila do cinema e surpreendeu ao contar sua história. Ela foi torturada na ditadura de Alfredo Stroessner, que comandou o país durante 35 anos, entre 1954 e 1989. E muitos dos torturadores, disse, ainda estão impunes. Ela chorou. Afirmou que não falava só em seu nome, que falava por muitos paraguaios e enfatizou os ´50 anos do Plano Condor’ – (conexão das ditaduras militares dos países do Cone Sul e com apoio dos Estados Unidos).

Se aproximou de Marcelo e agradeceu por ele ser um porta-voz do combate aos anos de horrores e ser defensor da democracia. Os dois apertaram as mãos, em silêncio, sob olhar respeitoso do público. 

Uma fila, então, foi formada por argentinos, paraguaios e outros latino-americanos, com os livros do autor. Antes de deixar o local, ele recebeu um lenço branco que simboliza a força das Mães e Avós da Praça de Maio. O desenho no lenço, contou Manuel para Marcelo, foi feito por uma criança brasileira.

“Luta comum” - No ano que vem, a Argentina completa 50 anos do golpe militar de 1976. Um tempo de crueldades que marcou para sempre a história do país – e da região. “Essa é uma luta (pela democracia) de muitos povos. E a memória precisa ser mantida, com livros, com filmes, com exposições... Tudo o que seja para demonstrar que essa é uma luta comum e não só do Cone Sul, mas de todos os povos..”, disse Marcelo Rubens Paiva. E foi novamente aplaudido.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.