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João Lister

Advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV e psicanalista

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Ministro sem delegação: o eco tardio do porão

O pedido de perdão de Maria Elizabeth ecoa como um bálsamo, enquanto a fala de Amaral Oliveira soa como o ranger de uma porta enferrujada do passado

Maria Elizabeth Rocha (Foto: José Cruz/Agência Brasi)

Há uma ironia quase poética — ou trágica — no fato de que, sessenta anos após o golpe de 1964, ainda se precise pedir desculpas às vítimas do regime. E mais irônico ainda é ver que, quando finalmente uma instituição militar decide reconhecer o óbvio, surge de dentro dela um general togado, inflamado, para repreender o gesto civilizatório como se fosse uma afronta à hierarquia. Foi o que fez o Ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira, do Superior Tribunal Militar, ao criticar publicamente a presidenta do Tribunal, Maria Elizabeth Rocha, por pedir desculpas em nome do STM às vítimas da ditadura.

Em tom de quartel, voz empertigada e convicção de quem acha que as instituições são extensão de sua farda, o ministro declarou — como quem bate continência a um fantasma — que a presidenta “não tinha delegação” para falar em nome do Tribunal. E aí está o cerne do ranço: o militar travestido de magistrado ainda acredita que um tribunal precisa de “delegação” hierárquica, como se a toga tivesse patente, e o Regimento Interno fosse um manual de caserna.

Mas a Lei, essa entidade civil que tanto incomoda os autoritários, desmente o general. O artigo 5º, inciso XXXVI, do Regimento Interno do STM, é cristalino: “Compete ao Presidente representar o Tribunal em suas relações com outros Poderes e autoridades.” Ou seja, não é por favor, tampouco por delegação dos pares — é atribuição legal. A presidência do STM é a voz institucional do Tribunal, independentemente da aprovação dos ministros que prefeririam calar diante da história.

Quando um ministro da República se insurge contra um pedido de desculpas por tortura e assassinato, o que está em jogo não é apenas um conflito de egos: é o embate entre dois Brasis. Um, democrático, que tenta, com esforço e dor, enterrar os mortos e assumir suas culpas. Outro, fossilizado na lógica da obediência cega, que insiste em chamar de “revolução” o golpe e de “salvadores da pátria” os torturadores.

O ministro Amaral Oliveira talvez acredite que o pedido de desculpas fere a honra dos quartéis. Mas, se há algo que fere a honra das Forças Armadas, não é o reconhecimento das vítimas — é o silêncio cúmplice diante dos crimes cometidos em nome da “ordem”. Herzog foi assassinado em uma cela do DOI-Codi, e até hoje há quem queira convencer o país de que ele se suicidou. O ministro, ao repreender o gesto da presidenta, se alinha a esse revisionismo patético, tentando maquiar a barbárie com verniz de legalismo.

A fala de Amaral Oliveira tem a arrogância típica dos que confundem autoridade com poder e disciplina com submissão. Sua indignação não nasce de zelo institucional, mas de uma nostalgia mal disfarçada: a saudade de um tempo em que ninguém pedia desculpas — porque ninguém podia falar.

A ministra Maria Elizabeth, ao pedir perdão às vítimas, não apenas cumpriu um dever ético; ela devolveu humanidade a uma instituição que sempre foi cúmplice da repressão. Sua atitude, mais do que um gesto simbólico, foi um ato de ruptura com o passado autoritário que ainda ronda o STM como um espectro. E, paradoxalmente, a crítica do ministro serviu apenas para provar o quanto essa ruptura é necessária.

Ao afirmar que ela não tinha “delegação” para falar em nome do Tribunal, Amaral Oliveira esqueceu o mais elementar: o poder de representação não se outorga entre pares, se extrai da lei. E a ele, como magistrado, não cabe conceder ou negar o que o Regimento já prevê. O que o ministro realmente quis dizer, em seu inconsciente institucional, é que não concederia a ela o “direito moral” de pedir desculpas — porque, talvez, em sua cabeça, ainda não há culpa a ser expiada.

Mas há. E é por isso que o pedido de perdão de Maria Elizabeth ecoa como um bálsamo, enquanto a fala de Amaral Oliveira soa como o ranger de uma porta enferrujada do passado, que insiste em não se fechar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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