Mirosmar, Mirosmar: contenha-se!
Nascido Mirosmar, Zezé Di Camargo usa fama para legitimar intolerância, misoginia e desinformação
No dia 15 de dezembro de 2025, um vídeo publicado nas redes sociais por Zezé Di Camargo sintetizou um fenômeno recorrente do nosso tempo: a corrosão ética provocada pelo fanatismo. O episódio não se limitou a um desabafo intempestivo de um artista consagrado, mas revelou como intolerância política, culto à personalidade e ressentimento ideológico podem deformar o senso crítico e empobrecer o debate público, mesmo quando partem de figuras populares e milionárias.
O estopim havia ocorrido na véspera, em 14 de dezembro, durante o lançamento do SBT News, novo braço jornalístico da emissora fundada por Silvio Santos. A solenidade, realizada em São Paulo, reuniu autoridades de diferentes campos institucionais e espectros políticos: o presidente Lula da Silva, a primeira-dama Janja, ministros do Supremo Tribunal Federal como Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o prefeito da capital, Ricardo Nunes. O cenário era inequívoco: um evento institucional, republicano e deliberadamente acima de partidarismos — fiel à tradição histórica de Silvio Santos. Não foi ele que, no auge da ditadura militar, criou um programa chamado “Bom Dia, Presidente”?
Zezé, cujo nome de batismo é Mirosmar José de Camargo, reagiu de forma destemperada. Declaradamente alinhado ao bolsonarismo, acusou o SBT de ter mudado de orientação política após a morte de Silvio, em 2024, e pediu publicamente que a emissora não exibisse seu especial de Natal, já gravado. O gesto soou menos como divergência legítima e mais como tentativa de impor uma leitura ideológica pessoal à gestão de uma empresa privada.
A crise se aprofundou quando Mirosmar optou pelo ataque moral. Ao afirmar que as filhas de Silvio Santos estariam “se prostituindo”, cruzou a linha que separa crítica política de agressão simbólica. A metáfora, dirigida explicitamente às mulheres que comandam o grupo — entre elas Daniela Abravanel Beyruti, presidente do SBT, e Patrícia Abravanel, diretora e uma das principais figuras da emissora —, foi amplamente interpretada como misógina e desqualificadora.
Nas últimas horas, diante da repercussão negativa e da gravidade das declarações, as herdeiras de Silvio Santos decidiram cancelar a veiculação do especial de Mirosmar, previsto para ir ao ar e que contava, inclusive, com a participação de Paula Fernandes, artista central da música sertaneja contemporânea. A decisão teve peso editorial e simbólico: não se trata de censura, mas de responsabilidade institucional diante de um ataque público injustificável.
Nas redes sociais, o episódio ganhou densidade crítica. Usuários lembraram que Mirosmar construiu parte de sua fortuna com shows financiados por prefeituras e contratos públicos, inclusive em administrações petistas. A incoerência alimentou ironias, cobranças e campanhas de cancelamento simbólico, incluindo mobilizações para retirada de suas músicas de plataformas digitais como o Spotify.
O caso, no entanto, vai além do personagem. Ele escancara a urgência de uma alfabetização ética e cidadã, capaz de ensinar limites, responsabilidade discursiva e convivência democrática. Saber ler o mundo político não é escolher um lado e demonizar o outro, mas compreender instituições, distinguir crítica de ofensa e reconhecer que pluralidade não é traição. Sem esse aprendizado básico, a opinião vira ruído e a convicção se transforma em pretexto para agressões.
A ausência dessa formação ética produz um tipo específico de ignorância: ruidosa, autoconfiante e impermeável aos fatos. É a ignorância que confunde discordância com inimizade, poder com dominação e visibilidade com autoridade moral. Não nasce apenas da falta de escolaridade formal, mas da recusa deliberada em conviver com a complexidade do mundo. Quando associada ao fanatismo político ou religioso, ela se torna particularmente tóxica.
Em Mirosmar, esse processo é visível. O menino pobre de Pirenópolis, que cantava em feiras e ônibus, tornou-se um multimilionário incapaz de lidar com a diversidade democrática e com mulheres exercendo poder de decisão. A fama, longe de ampliar horizontes, cristalizou certezas frágeis e reduziu o debate ao ressentimento.
Diante disso, não será surpresa se, no lugar do especial previsto para o dia 17 de dezembro, os assíduos telespectadores do SBT acabarem assistindo a mais um capítulo do eterno Chaves. Às vezes, o humor involuntário de um clássico mexicano ensina mais sobre respeito, convivência e limites do que discursos apresentados como coragem moral, mas que não passam de intolerância mal disfarçada.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

