Morgan Freeman e a falta de consciência que não quer calar
Que todo dia, nos seja um dia de conscientização, de aprendizado e de vontade para enxergar o outro, de fato, com igualdade e respeito. Se todos devemos cumprir os mesmos deveres, também devemos desfrutar dos mesmos direitos e oportunidades
"O dia em que pararmos de nos preocupar com Consciência Negra, Amarela, ou Branca e nos preocuparmos com Consciência Humana, o racismo desaparece." A frase entre aspas é do ator Morgan Freeman - grande astro do cinema americano - mas costuma ser usada por todos aqueles que ainda não entenderam muito bem, o que é ter consciência ou a usam simplesmente para relativizar o racismo e descaracterizar o processo de luta por igualdade racial. É o famoso, e as vezes perigoso: "Falou o que eu quero ouvir" Mas falar o que apenas alguns querem ouvir, tem as suas consequências e reflexos nos interesses da coletividade.
Morgan Freeman possui grande representatividade em sua área de atuação. Tamanho destaque - mais do que merecido, diga-se de passagem - faz com que a sua imagem seja vista, por muitos, como um referência de opinião e comportamento dentro da sociedade. Isso pode ser muito bom, mas também pode não ser tão bom assim. Dependendo do que ele falar. Sei que muitos irão me acusar de estar demonizando os pretos que discordam, ajudam relativizar o racismo ou que não se engajam tanto na luta por igualdade ou atribuindo-lhes a pecha de "capitães do mato", por falarem e se comportarem do jeitinho que a sociedade racista deseja. Mas não é bem isso. Ou não é bem só isso.
Todos nós temos uma maneira de pensar e de avaliar determinadas situações. Isto não significa que a nossa opinião seja a correta ou o paradigma a ser seguido. Muitas das vezes podemos estar fugindo da realidade, nos esquecendo de que ela não foge de ninguém. Pelo contrário, ela se apresenta diante de nós, de maneira clara e evidente, e mesmo fechando os olhos para não vê-la, ela continuará ali. Em algum momento, se quisermos, poderemos enxergá-la, mas também temos a opção de viver de olhos fechados para o resto da vida ou olhando apenas para o nosso umbigo.
Quando não entendemos muito bem ou não queremos entender determinados assuntos, geralmente opinamos erroneamente, de modo a desqualificar ou até mesmo a se opor a uma boa causa proposta. E isso pode ser feito, tanto de forma intencional, como de forma inocentemente útil e favorável ao sistema opressor. A apresentadora Glória Maria, postou em seu Instagram, a mesma frase de Morgan Freeman e como já era de se esperar, recebeu críticas e muitos elogios também. Mais um exemplo de uma figura de destaque, que exerce uma influência puramente opinativa sobre a sociedade e que acaba por colocar em cheque, a credibilidade de todo um processo histórico de luta por igualdade. Principalmente pelo fato de ser uma mulher preta se posicionando.
Vamos tentar analisar essa frase, que aparentemente, contribui para a união de todos os povos e raças, e que, supostamente, visa instituir, de forma simples, a verdadeira paz racial, social e universal. Se você ainda não tem consciência e empatia pelas necessidades, limitações, dificuldades e histórico de vida do outro, como poderá pensar no bem estar e na igualdade da raça humana? Se você ignora ou apoia todo um processo de aculturação, ao qual foram e ainda tentam submeter, indivíduos cujas origens étnicas não se enquadram no padrão sistêmico pré determinado e tido como de maior aceitabilidade, como você pode ter a pretensão de dizer que enxerga e respeita a todos com igualdade?
Se você ignora números, estatísticas e fatos históricos e cotidianos, que relatam e evidenciam o preconceito e o racismo estrutural, cultuado em nossa sociedade, como pode estabelecer um parâmetro minimamente honesto, para justificar a sua opinião de que tudo não passa de vitimização e de mi mi mi? Se você ainda não conseguiu evoluir, ao ponto de perceber que o racismo é um sistema de opressão institucional, covarde e pernicioso, que visa intimidar, diminuir e atribuir inferioridade pessoal, intelectual e moral, a indivíduos pertencentes a uma determinada raça, como pode acreditar que está sendo justo e humano em sua análise?
Como professar a liberdade coletiva, compactuando ou se omitindo, diante de um sistema que limita a liberdade individual, levando em conta fatores raciais? Falar em consciência humana, sem se importar com a realidade vivenciada pelo outro, é o mesmo que querer chegar ao quarto andar, sem antes passar pelo primeiro, pelo segundo e pelo terceiro. Não se pode evoluir como ser humano, queimando etapas. Eu sei que o nosso famoso "jeitinho brasileiro", acredita que é capaz de tudo. Até mesmo de provar que, palavras ou frases de efeito, tem maior poder de convencimento do que atitudes e fatos estampados bem na nossa cara. Mas só acredita nisso, aqueles que se enquadram no - nem tão seleto assim - grupo dos cegos que não querem enxergar.
Antes de falarmos em consciência humana, analisemos primeiro a nossa. O que estamos experimentando, vivenciando, compreendendo e o que estamos fazendo os outros experimentar, vivenciar e compreender, convivendo conosco? Será que já somos capazes de entender os aspectos e a totalidade do nosso mundo interior, antes de querermos afirmar as nossas ideias para o mundo exterior? Será que já somos suficientemente seres humanos e já adquirimos uma justa e exata percepção do que é moralmente certo ou errado, em atos e motivos individuais?
Como falar em consciência humana, se ainda nos segregamos por questões raciais, sociais, econômicas, religiosas ou ideológicas? Consciência, é ter convicção, conhecimento, discernimento, compreensão, empatia. É o ser humano tomado como ser pensante ou espiritual. É ter alma, espírito e mente elevados. É um conjunto de idéias, atitudes, crenças de um grupo, relativamente ao que possuem em comum ou ao mundo que os cerca. Por isso, nunca será possível nos conscientizarmos humanamente, sem antes nos conscientizarmos, racial, social, moral e eticamente.
Que todo dia, nos seja um dia de conscientização, de aprendizado e de vontade para enxergar o outro, de fato, com igualdade e respeito. Se todos devemos cumprir os mesmos deveres, também devemos desfrutar dos mesmos direitos e oportunidades.
Viva a resistência! Viva a consciência!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

