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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Morre Seabra Fagundes, o homem que escapou da morte para denunciar torturas

A jornalista Denise Assis relembra a trajetória de de Eduardo Seabra Fagundes, ex-presidente da OAB nacional, que faleceu nesta terça, aos 83 anos. "Seabra Fagundes receberia uma carta-bomba, em retaliação às denúncias que fez sobre os abusos cometidos pelo Estado brasileiro. A maioria, vítimas do AI-5", recorda

Eduardo Seabra Fagundes (Foto: OAB - RJ)
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Por Denise Assis, para o Jornalistas pela Democracia - Durante 35 anos – de 1980 a 2015 -, a testemunha X repassou as imagens daquele horário de almoço, em 27 de agosto de 1980, quando apertou o botão do elevador no hall de entrada do edifício de número 210, na Avenida Marechal Câmara, Centro do Rio de Janeiro. Ali, foi abordada por um rapaz moreno, de estatura mediana, cabelos encaracolados, vestindo calça e camisa social, à moda dos rapazes dos escritórios do entorno do imponente edifício, sede da Ordem dos Advogados do Brasil. Ele queria saber onde ficava a sala da presidência. Tinha uma encomenda para D. Lyda, a secretária de Eduardo Seabra Fagundes, o ex-presidente da OAB nacional, que hoje nos deixa, aos 83 anos.

Seabra Fagundes receberia uma carta-bomba, em retaliação às denúncias que fez sobre os abusos cometidos pelo Estado brasileiro, contra centenas de jovens que não se curvaram ao arbítrio e ousaram enfrentar o sistema opressor. A maioria, vítimas do AI-5, que hoje Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes querem ressuscitar. A testemunha X, ignorando o conteúdo do envelope pardo na mão do rapaz, o conduziu à sala da presidência e foi cuidar dos seus afazeres.

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Durante 35 anos a testemunha ouviu o estrondo que se seguiu, enquanto descia as escadas do quarto andar – onde ficava a presidência -, rumo ao terceiro, onde estava lotada. A testemunha X foi a primeira pessoa a constatar o horror da cena. O presidente, Seabra Fagundes, não estava. Em seu lugar, o conteúdo do envelope, entregue pelo rapaz gentil, vestido “à moda dos rapazes dos escritórios”, atingiu a sua secretária. Durante 35 anos a testemunha X misturou sentimentos. Espanava a culpa, ao mesmo tempo que comprimia em algum canto dos seus arquivos emocionais o medo. Durante 35 anos a testemunha X cuidou para que aquelas gavetinhas estivessem bem trancadas. E tanto fez que congelou as lembranças, apagando o rosto do mensageiro da tragédia. 

As denúncias de Seabra Fagundes, tão importantes para a sociedade - que até então desconhecia os requintes das torturas sobre o corpo, por exemplo, de Inês Etienne Romeu -, irritaram os que se assombravam com a possibilidade dos seus abusos virem à tona. Era preciso calar o presidente da OAB. Fizeram uma vítima inocente, cordial, prestativa. Eduardo Seabra Fagundes escapou para continuar com a cruzada que ajudou a alicerçar a abertura. A testemunha X saiu de cena, emudecida pelo medo.

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Hoje, quando esta figura especial de Seabra Fagundes nos deixa, remontei as quatro viagens até a casa da testemunha X, para tentar descongelar aquele passado. Os olhos dela diziam, sim, é ele, na foto.  O peito arfava, a boca se comprimia com força, e as palavras definidoras do fim daquela história não saíam.

O sargento Magno Cantarino Mota, formando da turma de paraquedistas de 1964, da Força Aeroterrestre, foi o mensageiro do envelope que vitimou D. Lyda Monteiro. Magno, em conversa presencial, me contou que se apresentou voluntariamente para o Centro de Informações do Exército (CIE), origem do DOI-CODI (RJ), o centro de torturas da Barão de Mesquita, onde foi morto o deputado Rubens Paiva.   Revelou, também, que na atividade de agente da repressão ligado ao CIE, adotou o codinome “Guarany”. Em trajes civis, foi ele quem entregou o artefato que vitimou D. Lyda Monteiro, secretária do então presidente, da OAB, Seabra Fagundes. 

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A cada ida à casa da testemunha X, o retorno era o momento de me perguntar: como romper esse silêncio, esse bloqueio emocional? Um detalhe do relato tantas vezes repetido por ela me daria o atalho para a gavetinha emperrada pelo medo. Em um desses retornos, pensei que ela só romperia o silêncio, diante de uma emoção avassaladora. Na quarta viagem e última tentativa, decidi que não iria sozinha. Levaria comigo Luiz Felippe Monteiro, o filho de D. Lyda, a quem a testemunha X se referia saudosa, expressando a vontade de revê-lo. Estava aí a chave, concluí, num estalo. 

Numa manhã de início de agosto, rodeada pela família, entre travessas de bolos e biscoitos, numa mesa no jardim, a testemunha X recebeu Felippe, o filho de Lyda Monteiro. Passei para ele a foto tantas vezes observada por ela, que chorava e negava. Desta vez, a testemunha X, verteu outro tipo de lágrimas. As de alívio. “Chega de fugir desse passado. Foi este o rapaz que levou o envelope que matou a sua mãe, Felippe”. Dessa vez, as lágrimas da testemunha X ganharam reforço. Impossível descrever o que se passou ali. Seabra Fagundes viveu para saber disto.

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