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João Lister

Advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV e psicanalista

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“Mother” – Revivendo a ontológica composição de Lennon – Verdadeiro compêndio psicanalítico

A letra é simples, quase infantil: “Mother, you had me, but I never had you. I wanted you, you didn’t want me.”

“Mother” – Revivendo a ontológica composição de Lennon – Verdadeiro compêndio psicanalítico (Foto: Foto: Reprodução/YouTube)

A gravação mais conhecida de Mother, de John Lennon,  foi lançada em dezembro de 1970, como faixa de abertura do álbum solo John Lennon/Plastic Ono Band, gravada sob influência da terapia primal, expressando sua dor pelo abandono dos pais e a perda da mãe. A versão de álbum começa com quatro badaladas de sino, seguida pelo vocal e piano crus. Essa ontológica composição não se limita a uma canção confessional. Ela se impõe como um documento psíquico. Os gritos finais — crus, repetitivos, quase insuportáveis — não são um recurso estético gratuito; são a irrupção do real, aquilo que escapa à linguagem e que, ainda assim, exige ser dito. Ali, Lennon não canta apenas sua história pessoal. Ele dá forma sonora a uma experiência que atravessa gerações: a ruptura do laço primordial e seus efeitos duradouros sobre o sujeito.

A letra é simples, quase infantil: “Mother, you had me, but I never had you. I wanted you, you didn’t want me.” A economia de palavras contrasta com a densidade afetiva. Não há metáfora sofisticada, nem sublimação poética. Há, antes, a repetição insistente do abandono — da mãe ausente, do pai que parte — como quem tenta, pela fala, domesticar uma perda que nunca foi simbolizada. O que Lennon encena ali é o drama da separação não elaborada: aquela que não encontra palavras suficientes no momento em que ocorre e retorna, décadas depois, como sintoma.

Esse mesmo drama, em escala menos espetacular, mas não menos devastadora, se repete diariamente nas separações conjugais contemporâneas. Adultos se separam — por esgotamento, incompatibilidade, violência ou simples desencontro — e, em meio ao colapso do vínculo amoroso, frequentemente subestimam o impacto subjetivo que essa ruptura produz nos filhos. A criança, diferentemente do adulto, não dispõe de narrativas prontas para compreender o que se passa. Ela vive a separação não como um rearranjo de afetos, mas como uma falha estrutural no mundo que a sustentava.

Do ponto de vista psíquico, a família não é apenas um arranjo social; é o primeiro cenário simbólico em que o sujeito se constitui. Quando esse cenário se rompe abruptamente, sem mediação simbólica, a criança tende a interpretar a perda como culpa própria. Não é raro que o divórcio seja vivido, silenciosamente, como rejeição: “Se eles se separaram, algo em mim falhou”. Essa fantasia inconsciente, quando não trabalhada, pode cristalizar-se em insegurança afetiva, dificuldade de confiar, medo de abandono ou compulsão à repetição de relações instáveis na vida adulta.

Os gritos de Lennon em Mother são, nesse sentido, pedagógicos. Eles mostram o que acontece quando a dor da separação é empurrada para o fundo da psique, sem escuta, sem elaboração. Ela não desaparece. Ela retorna. Retorna em forma de angústia difusa, de raiva sem endereço, de relações amorosas marcadas pela oscilação entre dependência e rejeição. Retorna, sobretudo, como uma pergunta sem resposta: “Por que me deixaram?”

Na cobertura jornalística das separações, costuma-se privilegiar o conflito entre adultos: disputas judiciais, pensões, guarda, acusações mútuas. Raramente se olha para o que permanece invisível — o impacto psíquico silencioso sobre os filhos. Crianças que aprendem cedo demais que o amor pode ir embora sem aviso. Adolescentes que se tornam excessivamente maduros, assumindo papéis emocionais que não lhes cabem. Jovens adultos que, como Lennon, só décadas depois encontram voz para nomear uma ausência antiga.

Nada disso significa defender a manutenção de relações conjugais falidas em nome dos filhos. A convivência marcada por violência, desprezo ou indiferença também produz danos profundos. O ponto crucial é outro: a separação não é apenas um evento jurídico ou doméstico; é um acontecimento psíquico que exige cuidado simbólico. Exige palavra, presença, escuta. Exige que os adultos sustentem, para os filhos, a ideia de que a ruptura do casal não equivale à ruptura do amor parental.

Quando essa mediação falha, o risco é produzir sujeitos que, como o Lennon de Mother, passem a vida tentando gritar o que não foi ouvido na infância. A canção, então, deixa de ser apenas um lamento pessoal e se transforma em advertência coletiva. Ela nos lembra que toda separação deixa marcas — e que a responsabilidade adulta não termina quando o casal se desfaz, mas justamente começa ali, no cuidado com aquilo que, se negligenciado, pode ecoar por toda uma vida.Mesmo quando há palavra, explicação, narrativa racional e tentativa de mediação simbólica, a ruptura do casal jamais se resolve integralmente no psiquismo infantil. A nomeação da dor não equivale à sua dissolução. A criança pode compreender, em nível consciente, que “os pais não se amam mais”, que “a separação não é culpa sua”, que “ambos continuam presentes”. Contudo, no registro do inconsciente — que não opera pela lógica, mas pela experiência afetiva — permanece inscrita uma perda absoluta: a dissolução do mundo originário tal como foi vivido.O que se rompe não é apenas o casal empírico, mas a fantasia estruturante de totalidade, na qual pai, mãe e filho constituíam um campo simbólico contínuo e relativamente estável. Ainda que os adultos reconstruam suas vidas, reorganizem rotinas e preservem vínculos parentais, algo se perde de forma irrecuperável: a confiança primordial na permanência do laço. Essa perda não é passível de reparação plena porque não se trata de um objeto substituível, mas de uma experiência fundante que não pode ser refeita nem reinscrita a posteriori.Assim, a dor que se instala não é episódica, nem contingente; ela se torna estrutura, funcionando como um traço mnêmico profundo que atravessa a vida psíquica do sujeito. Manifesta-se como medo difuso de abandono, como dificuldade de entrega amorosa, como hipervigilância afetiva ou, inversamente, como anestesia emocional. Mesmo quando não retorna como sintoma explícito, permanece como marca silenciosa, orientando escolhas, defesas e modos de amar.Nesse sentido, Mother não apenas ilustra uma história individual de abandono, mas revela uma verdade universal: há perdas que, embora simbolizadas, jamais são totalmente elaboradas. A separação dos pais inscreve-se no inconsciente infantil como uma espécie de luto sem objeto presente, um vazio que não cessa de não se inscrever completamente na linguagem. Trata-se de uma dor eterna não porque seja sempre sentida conscientemente, mas porque jamais é apagada. Ela permanece ali, como perda irreparável, ecoando ao longo da existência — não como lembrança contínua, mas como fundamento invisível da subjetividade.

Mother

John Lennon

Mãe, você me teve

Mother, you had me

Mas eu nunca a tive

But I never had you

Eu te quis

I wanted you

Você não me quis

You didn't want me

Então eu

So I

Eu só tenho que te dizer

I just got to tell you

Adeus

Goodbye

Adeus

Goodbye

Pai, você me deixou

Father, you left me

Mas eu nunca o deixei

But I never left you

Eu precisei de você

I needed you

Você não precisou de mim

You didn't need me

Então eu

So I

Eu só tenho que te dizer

I just got to tell you

Adeus

Goodbye

Adeus

Goodbye

Crianças, não façam

Children, don't do

O que eu fiz

What I have done

Eu não pude caminhar

I couldn't walk

E tentei correr

And I tried to run

Então eu

So I

Eu só tenho que lhes dizer

I just got to tell you

Adeus

Goodbye

Adeus

Goodbye

Mamãe, não se vá

Mama, don't go

Papai, volte pra casa

Daddy, come home

Mamãe, não se vá

Mama, don't go

Papai, volte pra casa

Daddy, come home

Mamãe, não se vá

Mama, don't go

Papai, volte pra casa

Daddy, come home

Mamãe, não se vá

Mama, don't go

Papai, volte pra casa

Daddy, come home

Mamãe, não se vá

Mama, don't go

Papai, volte pra casa

Daddy, come home

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.