Motta convocou um matador para relatar a PL da Antifacção
Relatoria entregue a um aliado de extrema-direita expõe a estratégia de Hugo Motta para expandir o controle conservador sobre a segurança pública
Por vários meses consecutivos, a nação brasileira tem sido continuamente insultada pela atual composição do Congresso, com diversas demonstrações de aversão ao bem-estar social.
Na entrevista de Hugo Motta e Guilherme Derrite sobre a minuta do relatório, uma cena foi sinal de manipulação, um tipo de censura, em que as perguntas dos jornalistas direcionadas a eles não eram ouvidas — somente as respostas deles —, de modo que os telespectadores não tinham como fazer uma reflexão analítica.
A pergunta para a qual não há resposta factível é por que Motta trouxe um deputado licenciado, com ficha borrada, para a relatoria de um projeto do governo. Responder que não havia outro capacitado é achincalhar os demais deputados.
Hugo Motta teve sua imagem tecida a partir de uma herança política familiar. Essa herança, há mais de um século, domina Patos, no sertão paraibano, e transformou a política local em negócio de compadres. Filho, neto e bisneto de prefeitos e deputados, Motta herdou não apenas o sobrenome, mas o sistema de poder que sustenta o clã.
O atual presidente da Câmara gosta de repetir que a sua força está na capacidade de diálogo. É o político que fala com todos, que se diz “de centro”, que encarna o discurso da conciliação em tempos polarizados. Mas esse verniz é apenas a camada mais superficial de um projeto de poder antigo e bem conhecido no Brasil. Usa platitudes para engabelar crédulos.
Apadrinhado por Arthur Lira, o jagunço institucional de Alagoas, Motta se consolidou como peça de sustentação da engrenagem que mantém o Congresso sob domínio da direita e adverso ao governo, mesmo quando finge equilíbrio.
Sua eleição à presidência da Câmara com apoio simultâneo do PT e do PL foi celebrada como símbolo de conciliação, mas traduziu o oposto.
Motta é a reafirmação de um bloco que sobrevive encenando neutralidade enquanto preserva o poder dos conservadores.
O autoproclamado “conciliador” é, na prática, um operador a serviço dos mesmos interesses que garantem ao centrão seu poder e à extrema-direita sua ascensão.
A decisão de Motta de nomear Guilherme Derrite, ex-secretário de Segurança do governo Tarcísio de Freitas, para relatar o Projeto de Lei Antifacção é a prova disso.
A escolha de um bolsonarista de farda, com discurso autoritário e passado de alta letalidade, não tem nada de neutra. É um gesto calculado, ideológico, que demarca território e reafirma um padrão conhecido. A Câmara dos Deputados segue sob o comando de quem prefere acenar à direita.
O secretário Guilherme Muraro Derrite nasceu em Sorocaba em 1984. Ingressou na Polícia Militar em 2003 e se formou como bacharel em Ciências Sociais e Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco.
Atuou como tenente nas Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA) de 2010 a 2013. A ROTA, mais que uma tropa, é uma instituição com cultura própria, marcada pela autopercepção de ser a “última trincheira” contra o caos.
Derrite internalizou e amplificou essa cultura, transformando a alta letalidade em um valor profissional e, posteriormente, em capital político. O “excesso de mortes em serviço” teria sido justamente o motivo que levou Derrite a ser afastado de suas atividades na corporação. Ele confirmou, ao conceder uma entrevista para um canal do YouTube em 2021, criando provas contra si mesmo e reafirmando suas tendências assassinas: “Porque eu matei muito ladrão. A real é essa, simples. Pá! Troquei tiro várias vezes, e uma atrás da outra. Acabou incomodando não sei quem, mas veio a ordem de cima para baixo, questão política: ‘Tira o Derrite da Rota’. E fui convidado a me retirar.”
Sua transição para a política foi o próximo passo que virou lógica da extrema-direita quando precisa fortalecer seu domínio em cada fresta da democracia.
Derrite levou para a mesa do parlamento a lógica da “guerra”, do extermínio, que praticava nas ruas.
Cada um dos sete inquéritos por homicídio e as 16 mortes associadas, longe de serem um segredo vergonhoso, foram meticulosamente convertidos em sua marca registrada.
Derrite é a personificação de uma política da morte, que se tornou uma plataforma eleitoral bolsonarista e, seguindo essa lógica, elaborou o relatório do PL Antifacções. O intuito dele e de Motta era botar mais fogo na polarização. Quase conseguiram: eles saíram chamuscados.
Sob o pretexto de combater o crime organizado, o texto original do seu relatório propunha submeter a Polícia Federal ao controle dos governadores, transferindo o comando da segurança para figuras como Tarcísio de Freitas e retirando do governo federal um instrumento essencial de investigação. A medida não foi puramente técnica, mas uma tentativa de concentrar poder e blindar governos estaduais do escrutínio público de suas matanças.
A segurança pública é nacional.
O crime organizado é formado de interfacções, como os Amigos dos Amigos, Comando Vermelho, Terceiro Comando, Primeiro Comando da Capital, Primeiro Comando Mineiro, Paz, Liberdade e Direito, Comando Norte/Nordeste. São nomes de facções criminosas espalhadas de Norte a Sul do país. E deve haver outras.
A Operação Carbono, por exemplo, ao investigar “relações promíscuas”, teria “assanhado” o comando da extrema-direita, provocando uma reação direta ao trabalho da Polícia Federal.
“A Operação Carbono Oculto tem sido apresentada por autoridades fiscais e policiais como a maior ação integrada contra o crime organizado no setor de combustíveis [...] o desdobramento ‘Carbono Oculto 86’ interditou 49–50 postos no Piauí, Maranhão e Tocantins, mapeando uso de empresas de fachada, fintechs e fundos, com R$ 5 bilhões em movimentações atípicas e apreensão de bens e uma aeronave.”
“O sucesso da operação provocou uma rápida reação da ultradireita. Primeiro, com as chacinas da Penha e do Morro do Alemão, uma ação articulada entre o governo do Rio, polícia e Ministério Público Estadual, seguida de um apoio imediato de quatro governadores de direita – Ronaldo Caiado, Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Jorginho Mello.” (GGN)
Derrite também buscou enquadrar facções criminosas como organizações terroristas, reforçando a retórica de guerra que transforma qualquer operação em campo de batalha, legitima o uso desmedido da força e facilita ingerência de Trump.
A Lei nº 13.260 de nossa Constituição define o terrorismo (Art. 2º) como a prática de certos atos por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito (de raça, cor, etnia e religião), com a finalidade de provocar terror social ou generalizado.
Logo, o terrorismo, nessa lógica inconstitucional de Derrite, é a palavra que autoriza o Estado a agir sem limites, ignorando por completo o fato de que facções criminosas são categorizadas como tais porque visam o lucro — que é o caso das facções que estão no alvo da extrema-direita. Não há cenário lógico para afirmar que elas priorizam o terror generalizado acima do benefício financeiro. Por isso mesmo têm ligações com a “Faria Lima”.
Motta está se posicionando como o grande articulador da direita pós-Bolsonaro. Ao dar a Derrite (e, por tabela, a Tarcísio) a relatoria do projeto de segurança do governo, ele faz um investimento de alto retorno, porém, até o momento, o tiro saiu pela culatra.
A insistência em debilitar financeiramente a Polícia Federal e as demais forças de segurança da União com o desvio de recursos para fundos estaduais, em vez de focar em descapitalizar o crime organizado, só reforça seu desejo de enfraquecer a estrutura federal para fortalecer os feudos estaduais. E mais: a descentralização e as divisões por estado é a estrutura atual que fracassou.
O relatório de Derrite, mesmo após o falso recuo sobre a Polícia Federal, permanece carregado de retrocessos inaceitáveis, conforme denunciou o Ministério da Justiça hoje.
O líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, fez críticas pontuais sobre a nova versão do texto de Derrite: “O texto promove uma fragmentação orçamentária em relação aos fundos que compromete a eficiência no enfrentamento às organizações criminosas de atuação interestadual”.
“O substitutivo também desmonta a política de descapitalização das facções ao eliminar as medidas cautelares especiais previstas no projeto original, substituindo-as por instrumentos já existentes e criando a ficção de uma ‘ação civil autônoma’, que só acrescenta morosidade, insegurança jurídica e pulverização dos procedimentos de recuperação de bens”, critica ainda Lindbergh. (Fonte: CCN)
Derrite não recuou, foi empurrado, e Motta levou gol. Ficou escancarado que não é um presidente imparcial na Câmara; é um militante da extrema-direita. Se não prepararmos esculacho a ele nas ruas, ainda vai aprontar outras à medida que as eleições fiquem mais próximas.
Quem tem medo do trabalho da Polícia Federal?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

