Movimentos contestatórios na Bielorrússia
Um olhar mais atento ao contexto interno bielorrusso revela que os protestos não são meramente o resultado de uma intervenção externa
Os movimentos de contestação às eleições presidenciais na Bielorrússia têm atraído, nos últimos dias, os olhares para uma região que não costuma ser objeto das atenções do chamado “mundo ocidental”. A situação, evidentemente, é complexa e não deve ser reduzida a um antagonismo entre, de um lado, as potências ocidentais (leia-se: Estados Unidos e União Europeia) e, de outro, a Rússia – ainda que esse seja um importante componente do conflito. Além das disputas no cenário internacional, é preciso considerar que a Bielorrússia é marcada por tensões políticas e sociais que levam a sociedade civil a reivindicar maior protagonismo.
Um olhar mais atento ao contexto interno bielorrusso revela que os protestos não são meramente o resultado de uma intervenção externa, mas expressam também a legítima reivindicação da população por seu direito de autodeterminação. Alguns elementos devem ser pontuados nesse sentido.
Sistema político-eleitoral
Na Bielorrússia, assim como em muitos dos Estados que compunham a União Soviética, o sistema político é profundamente oligarquizado. Um grupo limitado de famílias locais extremamente poderosas controlam a participação eleitoral e conseguem, dessa maneira, se perpetuar no poder. Elas contam frequentemente com a cumplicidade das forças policiais e com os órgãos da justiça, de tal maneira que não restam caminhos institucionais para a contestação da ordem. Assim, as eleições se tornam apenas um instrumento para institucionalizar uma dominação política que existe previamente.
Semelhantes relações de cumplicidade se observam em relação ao poder central. Alexander Lukashenko está no poder desde 1994 e, portanto, foi responsável pelas mais importantes nomeações no poder judiciário. Além disso, como as forças repressivas do Estado estão diretamente vinculadas à presidência, ele consegue controlar o resultado das eleições e garantir uma sólida maioria no Parlamento – são inúmeras as acusações de adulteração das urnas, ameaça a votantes e até mesmo de uso de violência física contra os eleitores. O domínio sobre o poder judiciário e o emprego de métodos coercitivos explicam os índices que o presidente teria obtido nas eleições de 9 de agosto – 80,2% dos votos, uma parcela pouco verossímil mesmo para líderes altamente populares.
A primazia do poder executivo sobre os demais poderes e especialmente sobre o sistema eleitoral ajuda a compreender o ceticismo das oposições à proposta de uma nova constituinte, que foi apresentada pelo presidente. Sem uma ruptura da ordem estabelecida e uma reforma dos mecanismos de voto, dificilmente será possível qualquer mudança profunda no país.
Dominação econômica
O controle político exercido pelos líderes locais está intimamente vinculado a uma dominação de ordem econômica, uma vez que esses indivíduos, via de regra, controlam também as atividades produtivas de suas regiões. Não por acaso, a população se refere a essas pessoas como “oligarcas”, pois identifica neles as mesmas características da máfia na época da União Soviética.
Longe de constituir uma exceção, a estrutura de dominação política e econômica na Bielorrússia se assemelha a outras experiências históricas. Novamente, os exemplos mais próximos vêm sem dúvida dos países que formavam o bloco soviético (em especial os países do Cáucaso e da Ásia central), mas esse caráter oligárquico pode ser identificado também em outras regiões do planeta e em outros momentos históricos. Desse modo, ao controlar a atividade econômica e as estruturas políticas em sua área de influência, os líderes locais conseguem se perpetuar nos órgãos do Estado e aumentar o seu poder na região. Em termos práticos, isso impossibilita o surgimento de lideranças políticas de oposição.
Relações com a Rússia
É certo que as tensões internas na Bielorrússia se articulam com as disputas na cena internacional, mais precisamente com as competições que a Rússia e as potências ocidentais continuam a travar por áreas de influência. Assim, as intervenções russas na Síria ou na Venezuela podem ser consideradas como uma resposta às pretensões imperialistas do “bloco ocidental”, do mesmo modo como o apoio que esse bloco oferece aos movimentos bielorrussos seriam uma forma de desestabilizar a presença russa em Minsk.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que, com algumas exceções (países bálticos, Geórgia e Ucrânia, notadamente), a Rússia exerce uma forte dominação sobre as repúblicas que compunham o bloco soviético. Conglomerados russos controlam setores estratégicos, serviços essenciais (como gás e eletricidade) e segmentos importantes da economia local. Consequentemente, protestos contrários à presença russa facilmente adquirem um caráter de “defesa nacional” contra interesses externos e se articulam às reivindicações por maior autonomia face à potência hegemônica na região. Desse modo, há uma convergência entre as demandas dos movimentos sociais e os interesses das potências ocidentais, o que não significa que aqueles sirvam apenas como massa de manobra destas.
Contestações sociais
É preciso acrescentar ainda que o governo bielorrusso é pouco tolerante a movimentos sociais e a contestações da ordem, de maneira geral. Manifestações de rua, mesmo as mais pacíficas, são duramente reprimidas, de tal maneira que há já um longo histórico de abusos policiais no país. A organização Human Rights Watch, por exemplo, aponta que, apenas entre 9 e 11 de agosto de 2020, um manifestante morreu e mais de duzentos (muitos deles profissionais de imprensa) foram hospitalizados devido à violência policial, além de inúmeras outras violações aos direitos humanos. No mesmo sentido, a Amnesty International ressalta, em sucessivos relatórios publicados nos últimos anos, diversos casos de prisões por motivação políticas e tortura realizada pelos agentes do Estado.
Ademais, a legislação bielorrussa restringe as liberdades de expressão, de associação e de imprensa, o que faz com que veículos de comunicação críticos ao governo sejam constantemente perseguidos e seus jornalistas sejam alvo da repressão do Estado. Portanto, os protestos que pedem a renúncia de Lukashenko devem ser compreendidos no contexto de uma agenda mais ampla, que visa a consolidar e ampliar os direitos civis na Bielorrússia.
A situação da Bielorrússia é efetivamente delicada. Se, por um lado, os protestos têm sido estimulados por grupos ocidentais para desestabilizar um importante aliado russo, por outro não se pode ignorar a natureza imperialista da presença russa na região, que limita o desenvolvimento e a autonomia dos países em sua área de influência. Mais importante, porém, é necessário reconhecer a legitimidade dos movimentos de rua, que reivindicam a consolidação dos direitos civis e políticos da população. Isso significa, certamente, garantir o respeito às liberdades fundamentais, mas passa também pela implementação de um sistema eleitoral (e político) mais transparente, cujos resultados reflitam o real interesse dos cidadãos. Nesse cenário, são auspiciosos os movimentos que vêm sendo feitos para buscar a mediação internacional e resolver pacificamente os conflitos, que já duram mais de duas semanas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

