Muito barulho por nada
Cúpula em Anchorage expõe jogo de poder: Putin ganha palco, Trump busca vitórias, e Ucrânia paga o preço. É a realpolitik
Em um capricho da história que parece saído de um romance de intrigas imperiais, o vasto território gelado do Alasca, outrora joia remota do Império Russo, foi palco de um encontro que reverbera ecos de antigos jogos de poder. Nesta sexta-feira, 15 de agosto de 2025, os presidentes Donald Trump e Vladimir Putin reuniram-se por três horas, sob o peso de uma expectativa global que aguardava um cessar-fogo na Ucrânia. Antes de mergulharmos nos meandros dessa cúpula, vale recordar, com o vigor de uma crônica jornalística, como essa terra de ursos e auroras boreais passou das mãos tsaristas para o Tio Sam.
No século XVIII, a Rússia, sob o manto expansionista de Pedro, o Grande, e seus sucessores, cobiçava o Pacífico. Em 1741, Vitus Bering, explorador dinamarquês a serviço do tsar, avistou as costas selvagens do que seria o Alasca. Era a “América Russa”, uma colônia distante onde caçadores de peles e missionários ortodoxos erguiam fortalezas de madeira contra o vento ártico.
Novo-Arkhangelsk, hoje Sitka, vibrava como capital, com igrejas de cúpulas bulbosas contrastando fiordes. A posse russa, porém, era frágil, sustentada pelo comércio de peles de lontras e focas, enquanto o Império se esticava como uma pele de urso sobre o globo.
Veio a Guerra da Crimeia (1853-1856), um banho de sangue que drenou os cofres de São Petersburgo. O tsar Alexandre II, pragmático como mercador, via o Alasca como fardo: distante para defender, vulnerável aos britânicos no Canadá. “Por que não vendê-lo aos americanos, esses yankees que ambicionam um continente de costa a costa?”, pensou.
William Seward, secretário de Estado sob Lincoln e Johnson, vislumbrou no gelo um potencial inexplorado. Em 1867, após negociações secretas, selou o tratado: 1,5 milhão de quilômetros quadrados por 7,2 milhões de dólares – dois centavos por acre. A imprensa americana explodiu em escárnio, chamando-o de “Seward’s Folly” ou “Seward’s Icebox”.
Horace Greeley, do New York Tribune, zombava: “Um território de ursos polares e mosquitos, bom apenas para congelar diplomatas”. Mas o tempo reescreveu a narrativa: a Corrida do Ouro de Klondike (1896) revelou riquezas; o petróleo de Prudhoe Bay, nos anos 1970, transformou o “fólio” em tesouro. Hoje, o Alasca é o 49º estado, ponte estratégica entre Ásia e América, lar de bases militares e pipelines.
É nessa ponte histórica que Trump e Putin se encontraram, em Anchorage, com ecos russos em nomes de ruas em cirílico e igrejas ortodoxas. A pauta? A guerra na Ucrânia, conflito que sangra a Europa há anos, agora no centro de uma diplomacia bilateral que isola o Velho Continente. Apesar do verniz de cordialidade, a cúpula, encerrada abruptamente após três horas, dissolveu-se em discursos vagos e encenações diplomáticas, sem avanços concretos. Trump, com sua verve de showman, proclamou “grande progresso” e que “muitos pontos foram alinhados”, mas reforçou a máxima: “não há acordo até o papel estar assinado”. Putin, com um sorriso de enxadrista, projetou otimismo calculado, sugerindo novas rodadas de diálogo, talvez em Moscou.
O saldo político pende para Putin, que saiu fortalecido, recebido como protagonista por Washington, rompendo o ostracismo imposto desde 2022. Uma imagem já viraliza: o líder russo, acusado de crimes de guerra, com dedo em riste, ao lado de Trump, sorrindo como se cumprimentasse um velho aliado. Enquanto isso, bombardeios russos seguiam devastando cidades ucranianas, e Zelensky, em Kiev, denunciava o contraste entre o teatro diplomático e o inferno no terreno. Putin, quebrando o protocolo, falou primeiro, exaltando Trump e afirmando que a guerra “jamais teria ocorrido” se ele estivesse no poder em 2022, apontando Zelensky como obstáculo à paz.
Três gestos reforçaram o simbolismo da cúpula. Antes de chegar, Putin fez escala em Magadã, depositando flores em homenagem à cooperação EUA-URSS na Segunda Guerra. Sergey Lavrov, seu chanceler, desembarcou em Anchorage com um casaco estampado com “CCCP”, evocando o espectro da União Soviética.
Ao fim, Putin, em tom de provocação leve, sugeriu um próximo encontro em Moscou, ao que Trump respondeu, com um aceno, que “poderia ver isso acontecendo”. Mais cedo, ambos embarcaram na “Besta”, o carro presidencial americano, sem intérpretes, alimentando especulações sobre conversas fora das câmeras.
Trump, de volta ao Salão Oval com seu “América Primeiro”, busca aliviar o fardo financeiro dos bilhões em ajuda à Ucrânia, priorizando muros ou tarifas contra a China. Seus interesses incluem estabilidade energética, com o Alasca como hub de gás, e uma vitória diplomática contra rivais democratas. Putin almeja alívio das sanções que asfixiam Moscou, reconhecimento tácito da anexação da Crimeia e Donbass, e espaço para reconstruir influência no Leste Europeu.
Os prós da cúpula? Um possível cessar-fogo, poupando vidas e estabilizando mercados de grãos e energia. Trump argumenta que negociações diretas cortam o nó górdio – alusão à lenda de Alexandre, o Grande, que, diante de um nó impossível, o partiu com sua espada. Putin ganha legitimidade, posando como pacificador.
Mas os contras pesam como icebergs: traição aos aliados da OTAN, que veem na ausência europeia um isolamento deliberado. A União Europeia, fragmentada por populismos, assiste de longe, com Macron e Scholz murmurando sobre “unilateralismo americano”. A Ucrânia, principal interessada, clama por inclusão. Zelensky teme que sua soberania e reparações sejam barganhadas, ecoando Yalta em 1945.
Nessa dança de poderosos no Alasca, a história ri por último: Uma terra vendida por tostões hospeda barganhas que podem redefinir mapas. Resta saber se o degelo diplomático apazigua o conflito ou apenas posterga o longo inverno da Ucrânia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

