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Regina de Aquino

Professora titular aposentada do DMAT-CCE-UFES

11 artigos

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Mulher, dos 60 aos 20

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Eu nasci numa cidade pequena do interior de São Paulo, numa época em que não tinha telefone nas casas. Fazer uma ligação para a Capital do estado, era algo literal. Chegávamos ao posto telefônico, ali, na Rua Principal, as 8 da manhã e a telefonista avisava que a ligação ficaria pronta por volta do meio dia. Precisava conectar todos os postos telefônicos daqui até la!! Alguém consegue imaginar isso, nos dias de hoje, em que podemos realizar conferência virtual instantaneamente? Pois e!

Eu fui filha de uma mulher lutadora e corajosa. Minha mãe era uma “mulher largada do marido”. Naquela época, nessa sociedade provinciana, isso era um xingamento, uma falha de caráter da mulher, uma imoralidade. Mamãe, educada para ser dona de casa, “Do Lar”, como diziam, começou a ganhar dinheiro próprio costurando, enquanto estudava para se formar professora. Fez uma bela carreira no magistério público estadual, duas graduações e uma especialização e educou três filhas. Todas nós, “fizemos uma faculdade”, numa época em que não havia nem governo Lula e nem a Universidade para Todos do Haddad. Lutou firme, com pouco apoio e muita torcida contra. Deu seu melhor, como mãe, professora e mulher. Venceu como pessoa, humana e generosa que é.

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Claro que seguindo seu exemplo fui desbravar fronteiras: ao invés das belas Letras decidi fazer Ma-te-má-ti-ca! Nessa época, muitos já tinham telefone em casa mas, era ditadura, o homem ainda era o chefe da família, o dono das vidas da mulheres, e elas ainda eram criadas para serem donas de casa. Era 1977. Me perguntavam o que eu iria fazer com isso (a Matemática). Logo desisti de explicar e dizia que ia ser professora. Mas, na verdade, eu queria era aprender como era aquilo de construir resultados usando uma lógica formal do pensamento. Parece estranho mas eu explico.

Eu minhas irmãs fizemos no ensino médio o curso de magistério, Mamãe aflita, dizia que devíamos ter uma profissão que nos desse sustento, para não ficarmos como ela, desamparada e que depois podíamos decidir o que fazer. Pois bem, no final desse curso fiz uma especialização, no método Montessoriano de ensino e me encantei com a forma que se ensinava matemática nessa técnica de ensino, aprendi toda a matemática que nem sabia que existia, me apaixonei! Queria aprender mais!! E as pessoas à volta, não entendiam isso. Desisti de explicar.

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Quando fui para o Rio de Janeiro continuar a estudar, o “pra quê?” voltou a toda carga. Dessa vez, nem perdi tempo em responder. Meus pais me apoiaram, e isso foi suficiente. Em 1983, iniciei meu mestrado no IMPA. Fui a única mulher no mestrado em Matemática do IMPA no período de 1983 a 1986. Os meus colegas quase sempre me consideravam inferior a eles e sempre se indignavam quando eu me sobressaia na turma, (como pode?!). Sim, eu tinha lacunas na minha formação, que era menos completa que a deles, mas eu era filha da minha mãe lutadora e corajosa.

Essa época foi de luta política também. Os militares no poder levaram o país a falência. Nós jovens, queríamos liberdade. Mudávamos os costumes e comportamentos. Queríamos escolher nossos projetos de vida, de família e de país. Queríamos a tal democracia, que não sabíamos bem o que era mas sabíamos que era onde mora a Liberdade. Foram as passeatas pela Diretas Já que moldaram meu perfil político. Foi num comício na Cinelândia que ouvi Lula, pela primeira vez, e era tão entusiasmada com seu discurso que me perguntaram de onde eu conhecia esse operário. Eu respondi. Eu não conheço o operário, mas suas ideias, eu as conheço bem e as apoio.

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Aqui abro um parênteses.

Meu avô, pai da minha mãe, ambos cultos e eruditos, me deu um monte de livros para ler e eu, era uma leitora ávida. Para os dias de hoje parece estranho mas nos anos 60... a TV só funcionava poucas horas por dia, a luz também, a noite reduziam a potência e era cara!! Cinema, só na sessão de domingo no teatro da Praça Central e só de vez em quando. Não tinha CineMark, nem YouTube, nem NetFlix, e claro! não tinha celular. Mas, também, não tinha reuniões nas ruas, eram proibidas. Não se podia parar para conversar nas calçadas. Chegaram a proibir a Quermese da Padroeira da cidade...

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Eu li de tudo, de Machado de Assis a Nietzsche passando por José de Alencar e Dostoiévski. O Capital eu não li, o exemplar do vovô foi queimado na fogueira de São João em algum momento entre 64 e 68. A ditadura não perdoava gente culta e erudita. Trataram de dizima-los. Eles também não gostavam de mulheres independentes.

Fecho parênteses.

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Voltando aos meus estudos...Superei as dificuldades, fiz um belo mestrado e várias disciplinas de doutorado já pensando em entrar no programa, logo em seguida. E nasceu meu filho querido! Prematuro, tivemos que parar tudo para cuidarmos de nossas saúde. Um ano depois, fui atrás de emprego, consegui um contrato temporário no Departamento de Matemática da USP, em São Paulo, depois fiz concurso, me efetivei. Passei 14 anos naquela instituição e aprendi muito sobre excelência no ensino superior e na pesquisa acadêmica.

O preconceito de gênero era velado, contido. Era um comportamento meio mudo, só de canto dos olhos. Mas estava lá, quando tentavam me dar aulas em horários impossíveis de cumprir para quem tem filhos, ou reuniões que não terminavam nunca, antes da saída da escola. Ou ainda, na exigência que eu completasse logo meu programa de doutorado. Era um mantra o papo de que a “vida pessoal” não podia interferir na “vida profissional”.

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Isso, funcionava muito bem para quem tinha esposa que cuidava da casa, das compras de supermercado, dos filhos, da escola e suas reuniões, dos estudos e tarefas. Como eu não tinha “esposa” mas tinha filho pequeno amargava a dupla jornada, como muitas de nós até hoje. A aparência de igualdade de gêneros na Academia se desmorona rapidamente, no dia-a-dia da vida das mulheres. As condições adequadas de vida cotidiana que permitam a produção de trabalho de excelência era uma obrigação pessoal da mulher, já os homens a haviam obtido, culturalmente, a priori.

No início de 1999, eu estava exausta. Tinha um lindo filho de 12 anos. Terminara o doutorado, com um programa sanduíche na Virgínia, que me rendera um convite para um pós-doutorado. E não aguentava mais a vida insana e poluída da Metrópole Paulistana. Voltei aos Estados Unidos para o pós-doc sem vínculo com a universidade, só com bolsa de estudos. Quando retornei, decidi deixar a USP. Decisão difícil.

Depois de sucatear por anos a fio as universidades federais, o FHC abrira concursos no país todo, na esperança de eleger Serra. Passei no concurso e fui para o Departamento de Matemática da UFES - a Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória. Cidade pequena e praiana, um oásis depois de 14 anos de Sampa desvairada, com filho pequeno e salário achatado...

E comecei tudo de novo. Carreira e lutas. Mas, desta vez, eu vinha preparada. E como diz o poema de Fernanda Castro (**), com minhas armas de vencida “Alma, Sonho e Poesia”.

Ao longo dos 16 anos que atuei no Centro de Ciências exatas, contribui ativamente para a maioria dos grandes projetos que mudaram a cara daquele lugar. Montei o programa de pós-graduação da Matemática, e trouxe um monte de investimentos e bolsas para ele, organizei eventos nacionais e internacionais, reestruturei a vida do departamento quando chefe, democratizando a distribuição de tarefas, montamos e reequipamos todos os laboratórios de graduação, trouxemos mais vagas docentes para o nosso departamento, criamos um embrião de Matemateca e um evento anual de Mostra de Matemática para a comunidade externa, fortaleci meus laços de colaboração com a USP e criei outros com a Universidade de Sevilla, na Espanha. Em 16 anos, de 2002 a 2018, fui do início até o final da carreira. E claro, dei aulas, orientei alunos, participei de muitos congressos, fiz pesquisa, publiquei artigos. Depois de 36 anos de Magistério, aos 60 anos, me aposentei como Professor Titular.

Sofri um monte de críticas e restrições nessa jornada, no Espírito Santo, porque era mulher, porque era “estrangeira”, porque “trabalhava demais”. Nesse momento da vida, eu já nem pensava nas explicações e porquês. Eu vi a universidade mudando debaixo dos meu olhos. Eram os governos Lula e Dilma. Os governos populares do PT construíram um Estado Moderno e Próspero, no qual a mulher tinha espaço de atuação e conquistava as condições para exercer plenamente suas habilidades e competências.

Entrei numa universidade pública federal que, em Outubro de 2002, não tinha mais papel para aplicarmos provas aos alunos e um departamento de Matemática com 18 docentes homens e duas mulheres. Saí de lá, deixando 39 docentes, atuantes na produção de conhecimento e orientação acadêmica de nossos estudantes de graduação e mestrado, um terço deles, de mulheres professoras doutoras e pesquisadoras.

As mudanças foram enormes na Universidade. Os meus colegas-homens passaram a fazer compras, lavar louças, buscar crianças nas escolas e compartilhar tarefas. Atualmente as mulheres mães, tem conseguido, extensões de prazos de avaliação, de bolsas e de projetos como incentivo a uma maternidade atuante e saudável. Lutamos cotidianamente para uma licença paternidade estendida, por entendermos que a educação de uma criança é tarefa a ser compartilhada pelos pais, quaisquer que sejam seus gêneros.

As mudanças foram enormes na sociedade. Fruto de décadas de lutas. Dos anos 60 até esses anos 20 do século 21, ou se preferir, dos meus 20 anos até os meus 60, tivemos avanços maravilhosos.

E agora, veio essa gente, apoiadores de ditadura, de militares no poder e de costumes retrógrados, trazendo uma “ponte para o futuro” que nos levou de volta aos anos 60, destruindo tudo que encontraram pela frente. Nos atacam de todas as maneiras. Reduzindo as verbas de manutenção da universidade pública, tirando bolsas de alunos carentes e da pós-graduação, cortando mais de 70% das verbas de investimento em projetos de ciência e tecnologia. E ainda, revivendo uma esdruxula “lei da mordaça”, impedindo docentes de opinar politicamente dentro da Universidade!!

Mas, estamos aqui para dizer para resistir e começar tudo de novo. Como escreveu Fernanda de Castro (**), poetisa Lisboeta do século passado:

Oh, não, punhais e espadas!
Eu só quero cantar! Não quero ossadas
nem, sob os pés, 'um chão de campas rasas.
Eu só quero cantar! Só quero as minhas asas
e a minha melodia: Alma, Sonho e Poesia...”

#forabolsonaro

#vacinajá

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