Multinacionais impõem a sua “lei” ao Sul Global
As corporações multinacionais impõem suas regras, que implicam um endividamento crescente e acumulado para as populações dos países do Sul Global
Por Sergio Ferrari - O mecanismo de solução de controvérsias investidor-Estado, conhecido como ISDS (Investor-State Dispute Solution), atua como um instrumento financeiro para condicionar os governos e perpetuar a dependência internacional dos Estados. As demandas investidor-Estado se multiplicaram nas últimas duas décadas em todos os continentes. De um total global de seis casos, em 1996, chegou a 1.332 até o final de 2023. Significativamente, os países latino-americanos foram processados em 380 ocasiões, o que representa 28,5% dessas demandas (https://isds.bilaterals.org/?-the-basics-&lang=es).
Esse mecanismo de arbitragem internacional permite que investidores estrangeiros – principalmente grandes corporações transnacionais e fundos de investimento – processem os Estados perante tribunais internacionais quando considerarem que leis, regulamentos, decisões judiciais ou outras medidas de um governo nacional violam suas proteções definidas em tratados ou acordos comerciais. Dessa forma, quaisquer disputas são litigadas fora das jurisdições nacionais.
Esses casos são resolvidos por três árbitros, geralmente juristas ligados ao setor privado e, portanto, com forte simpatia pelas empresas. No caso específico de ações judiciais contra a Argentina, existem basicamente três escritórios de advocacia especializados em promovê-las. Freshfields Bruckhaus Deringer, o que mais atendeu aos interesses dos investidores na América Latina, e litigou quinze ações judiciais contra esse país sul-americano. É seguido por King & Spalding, com doze, e M. & M. Bomchil, com sete.
Por causa de seus efeitos antissociais, o ISDS gerou críticas no âmbito acadêmico, na sociedade civil e nos movimentos sociais, internacionalmente, que questionam, sobretudo, a falta de transparência nos procedimentos arbitrais, bem como a ausência de imparcialidade e independência dos árbitros. O processo pode ser executado em qualquer lugar do mundo e o custo da arbitragem investidor-Estado é maior do que um julgamento em tribunais nacionais. Além disso, apenas investidores podem iniciar esse tipo de ação judicial. Paradoxalmente, as vítimas de abusos por parte de empresas transnacionais em um determinado país não dispõem de nenhum mecanismo judicial para processar uma multinacional. Para os poderosos, isso se chama "justiça".
A Argentina na mira
Por mais de 20 anos, e até 2024, quando cedeu o primeiro lugar à Venezuela, a Argentina foi o país com o maior número de ações judiciais movidas contra ela perante esses tribunais internacionais de arbitragem. Com o agravante de ser o país com o maior número de tratados bilaterais de investimento (TBIs) em toda a América Latina e Caribe.
"O país está perdido em um labirinto de arbitragem internacional que lhe custou caro", diz um estudo recente elaborado em conjunto pelo Transnational Institute (TNI), com sede em Amsterdã, Holanda, e por três organizações argentinas: a Fundação Ambiente e Recursos Nacionais (FARN), o Observatório Petroleiro Sul e o Espaço de Trabalho Fiscal para a Equidade (EFTE).
De acordo com este relatório, o governo de Javier Milei, recentemente, dobrou a aposta ao expandir os direitos dos investidores por meio do Regime de Incentivos para Grandes Investimentos (RIGI). É uma legislação que concede direitos extraordinários a todos os investidores, estrangeiros e nacionais, que agora têm a prerrogativa de processar o Estado perante um tribunal arbitral internacional. "As consequências podem ser uma nova avalanche de demandas de arbitragem e um aumento da dívida externa", enfatiza o estudo.
Em relação a esses tratados TBIs, que concedem proteção extraordinária aos investidores estrangeiros, na Argentina quase todos eles – aproximadamente 46 – foram acordados na década de 90, durante o governo de Carlos Menem. Esse mecanismo era de uso exclusivo de investidores estrangeiros até a aprovação do RIGI, em julho de 2024. A partir dessa data, o privilégio dos investidores estrangeiros foi estendido aos investidores nacionais, que investem, em particular, nos setores de energia, da mineração e dos hidrocarbonetos (https://isds-americalatina.org/argentina/).
YPF, um caso emblemático
Várias das ações judiciais contra a Argentina são muito significativas e ajudam a entender o impacto desse mecanismo, que viola qualquer conceito de soberania nacional. É o caso da Repsol, uma petrolífera espanhola que, em 1999, comprou a empresa argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) em sua totalidade. Em 2012, quando o Estado argentino expropriou as ações da Repsol, argumentando que a autossuficiência energética do país deveria ser garantida, essa empresa respondeu com uma ação judicial em quatro instâncias judiciais diferentes. Uma dessas instâncias foi o Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID), do Banco Mundial.
O processo inicial era de US$ 10,4 bilhões, mas o Estado ameaçou investigar passivos ou dívidas ambientais que a Repsol poderia ter causado por negligência ou abuso de recursos naturais. Finalmente, em 2014, foi alcançado um acordo de 5 bilhões de dólares para encerrar o caso. Apesar disso, uma década depois, o Estado enfrentou um novo revés como resultado de uma ação judicial iniciada em Nova York pelo fundo abutre Burford, que, anos antes, havia adquirido o direito de litigar essa ação do Grupo Petersen, sócio minoritário argentino, no momento da expropriação. Devido à atualização dos valores envolvidos, a decisão a favor de Burford trouxe-lhe um lucro de cerca de 16 bilhões de dólares.
O caso da YPF mostra como diferentes atores – da espanhola Repsol ao Petersen Group e, finalmente, ao fundo de especulativo Burford – empregaram estratégias semelhantes de apropriação. Com efeito, todos eles usaram os próprios ativos da YPF para financiar sua compra, extraíram dividendos maciços, venderam ativos da empresa e depois se retiraram com ações judiciais milionárias. Um processo que não só constitui uma transferência de riqueza do Estado para o capital privado, mas também o enfraquecimento da capacidade da YPF para cumprir os seus objetivos de desenvolvimento nacional, soberania energética e distribuição social.
Números arrepiantes do "caso" argentino
Argentina e Venezuela, os dois países latino-americanos mais processados, respondem por quase um terço das 415 ações judiciais contra a América Latina e o Caribe reconhecidas e oficializadas até 1º de julho de 2025. A maioria das ações judiciais contra a Argentina é resultado do fim da Lei de Conversibilidade, em 2002, que incluiu a desvalorização da moeda, o reajuste e/ou conversão, o congelamento das tarifas de serviço público e a renegociação dos contratos de concessão. Somente entre 2002 e 2007, a Argentina foi processada 42 vezes, com um pico em 2003, com 20 das 25 ações judiciais contra países latino-americanos. Esse fenômeno deu origem a numerosos textos acadêmicos referindo-se a essa situação como o "caso argentino".
De acordo com o relatório conjunto do Instituto Transnacional, da Fundação Ambiente e Recursos Nacionais, do Observatório Petroleiro Sul e do Espaço de Trabalho Fiscal para Equidade, os investidores se beneficiaram muito no processo contra a Argentina. Dos 65 processos contra esse país, 26 decidiram a favor dos investidores e seis a favor do Estado, enquanto outros 18 terminaram com acordos entre as partes. Quatro ainda estão em andamento, um terminou em "empate" e dez foram descontinuados. Se for considerado que um acordo entre as partes geralmente beneficia os investidores de alguma forma, os 18 mutuamente acordados podem ser adicionados aos 26 que os favoreceram por decisão judicial. O estudo conclui que "86% das ações judiciais já resolvidas contra a Argentina (sem contar as descontinuadas) terminaram com uma decisão benéfica para o investidor".
O montante de recursos financeiros em jogo é monumental: 53 das 65 ações arbitradas internacionalmente contra o Estado argentino custaram 9.3 bilhões de dólares, ou seja, o dobro do orçamento para a educação em 2024, o que mostra que esse tipo de processo "aprofunda o endividamento ao esvaziar os cofres do Estado e limitar seu funcionamento".
Quanto à nacionalidade das empresas demandantes contra a Argentina, um terço são americanas (22 processos). Seguem-se Espanha (10), França (8) e Itália (6). De fato, se forem acrescentadas as exigências dos investidores europeus, são quase 60% dos casos; juntamente com os dos investidores americanos, chegam a 92%. O único país latino-americano com investidores que processaram a Argentina é o Chile (4).
A maior parte dessas demandas foi registada no sector dos serviços, principalmente no fornecimento de energia (19); atividades financeiras (11) e abastecimento de água e gestão de resíduos (10). Juntos, os processos nesses três setores representam 61,5% de todos os processos contra a Argentina.
A teia de aranha da arbitragem implantada por grandes empresas para sancionar, condicionar e saquear Estados cresceu exponencialmente nas últimas duas décadas. A América Latina em geral e países como a Argentina, em particular, já foram encurralados. E se isso continuar, com a nova legislação promovida pelo governo Milei – como o Regime de Incentivos a Grandes Investimentos, RIGI – será quase impossível por décadas escapar desse labirinto que a cada dia disseca ainda mais um Estado que respira com um pulmão artificial.
Tradução: Rose Lima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

