Mundo bike

Uma hora ia acontecer: ficou obrigatório todos andarem de bicicleta. Foi até mais rápido que o esperado. Talvez porque o governo chinês decidiu investir em milhares de quilômetros de ciclovias pelo Brasil e, com a construção, escoou milhões de bicicletas do Oiapoque ao Chuí. O decreto federal, na verdade, acabou surpreendendo mais os proprietários de empresas de ônibus, motoristas de carros de aplicativo e donos de automóveis particulares. Os trens e o metrô, o Estado já havia desativado. Esses indivíduos ficaram com a batata quente na mão, afinal, ninguém poderia comercializar mais veículos automotores. Era comum passar em frente à uma residência e ver uma BMW ou uma Mercedes-Benz jogadas no gramado, enferrujando.
O trânsito melhorou muito nas grandes cidades. Nada de engarrafamentos, colisões graves, atropelamentos. Por outro lado, as mortes acabaram aumentando demais pela proibição de ambulâncias com motor à explosão. Quando um cidadão precisava ir urgentemente a um hospital era conduzido numa espécie de riquixá puxado por um servidor público. Como os congestionamentos eram praticamente zero, os “mulas” chegavam bem rápido ao pronto-socorro. Mesmo assim, os índices de mortalidade eram muito superiores aos dos tempos das sirenes, ultrapassagens e finas.
Seu Jofre era desse tempo das ambulâncias motorizadas. Do alto de seus 87 anos ainda teimava em manter o Chevette 1978, vermelho-cereja na garagem.
A família dele, inclusive, estava muito apreensiva e com razão: seu Jofre vivia prometendo tirar o carro de casa e sair passeando por aí. Nos almoços de domingo, filhos e netos tentavam convencê-lo dos riscos daquela atitude:
– Pai, não existem mais carros circulando, isso é uma doideira!
– Vô, pelo amor, o senhor vai preso!
– Vozinho, vem andar de bicicleta com a gente. Por favor, vem!
Contudo, a teimosia era uma das falhas de caráter do ancião. Tanto que, naquela manhã de sábado, o ronco do motorzinho do Chevette ecoou pelo bairro da Vila Leopoldina. Seu Jofre deu ré da casinha de vila e acelerou.
Pegou a Imperatriz Leopoldina, passou perto do Parque Villa Lobos – onde circulavam centenas de bicicletas – e virou à direita rumo à Marginal Tietê. Os ciclistas não acreditavam no que viam: um velho carro conduzido por um velho motorista no meio deles.
Marginal vazia, Seu Jofre chegou logo à Via Dutra. Iria ao Rio, como foi a última vez, no mesmo Chevettinho, na companhia de dona Ieda, sua finada esposa. Enfiou uma fita cassette no TKR, ligou o amplificador e a voz de Francisco Petrônio reverberou pelas caixas Bravox: “eu sonhei que tu estavas tão linda…”
A Dutra sem um carro, só as bicicletinhas, lá ao fundo, passando na ciclofaixa. O sol quase igual ao daquela manhã, idos de 1985, com dona Ieda. Ah, rever o Corcovado, o Leme, Aterro do Flamengo, talvez tomar um chope no Shirley se a pressão e a glicose estivessem nos conformes…
Foi quando soou a rajada da metralhadora.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
O conhecimento liberta. Quero ser membro. Siga-nos no Telegram.
A você que chegou até aqui, agradecemos muito por valorizar nosso conteúdo. Ao contrário da mídia corporativa, o Brasil 247 e a TV 247 se financiam por meio da sua própria comunidade de leitores e telespectadores. Você pode apoiar a TV 247 e o site Brasil 247 de diversas formas. Veja como em brasil247.com/apoio
Apoie o 247
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247