Na África, continente luminoso, o paradoxo da abundância
Corpos roubados no passado, riquezas saqueadas no presente, a África tem muito a ensinar; devemos reparar os crimes cometidos contra seu povo
A afirmação de que “a África é limitada por recursos” é frequentemente enganosa e simplifica excessivamente o problema real. Em um continente repleto de riquezas naturais, o verdadeiro desafio reside no paradoxo da abundância: apesar de uma vasta riqueza, muitos países africanos enfrentam pobreza extrema, sistemas de saúde frágeis e infraestrutura social precária. Essa narrativa não reflete escassez, mas sim uma má gestão que perpetua desigualdades profundas.
Considere os dados: a África Subsaariana detém cerca de um terço de sua riqueza total em capital natural, incluindo depósitos de petróleo, minerais e gás, que representam um terço ou mais das exportações na maioria dos países da região. No entanto, esse potencial não se traduz em prosperidade. Em 2024, a região abrigava 16% da população mundial, mas respondia por 67% das pessoas em extrema pobreza global, com 464 milhões vivendo com menos de US$ 2,15 por dia. Essa discrepância ilustra a “maldição dos recursos”, em que nações ricas em commodities, como Nigéria e Angola, veem seu desenvolvimento humano estagnado. Crianças nesses países têm maior probabilidade de morrer antes do primeiro aniversário, e o crescimento econômico, projetado em 3,4% para 2024, é insuficiente para reduzir a pobreza de forma equitativa.
Os sistemas de saúde exemplificam essa falha. Apesar da abundância mineral, os sistemas de saúde na região africana da OMS são fracos e ficam muito atrás de outras regiões globais. A eficiência é de apenas 80%, implicando que quase um em cada cinco dólares gastos em saúde é desperdiçado. Gastos diretos do bolso chegam a 40%, acima da média regional de 36%, forçando famílias à ruína financeira. Além disso, 47% da população global carece de acesso a diagnósticos essenciais, com a África particularmente afetada. Essa vulnerabilidade foi exposta pela pandemia, revelando fraquezas que vão além da falta de fundos: é uma questão de priorização ineficaz.
Essa crise, contudo, tem raízes profundas na exploração histórica do continente. A África, berço da humanidade, foi rasgada pelos europeus como uma ferida que sangra até hoje. Desde o século XV, portugueses, holandeses, britânicos e franceses saquearam suas costas, iniciando com o comércio de escravos transatlântico, que arrancou mais de 12 milhões de almas acorrentadas para as Américas entre 1500 e 1860, trocadas por bugigangas e armas que alimentaram guerras internas. No século XIX, a Conferência de Berlim de 1884-1885 dividiu a África em feudos coloniais, explorando diamantes, ouro, borracha e marfim. O Congo sob Leopoldo II sofreu milhões de mortes por trabalho forçado, enquanto economias foram moldadas para exportar riqueza bruta, deixando miséria. Hoje, o neocolonialismo persiste em multinacionais que sugam petróleo nigeriano e cobalto congolês, perpetuando a dependência e transformando abundância em maldição eterna.
A ajuda estrangeira e os empréstimos, embora bem-intencionados, não resolvem o cerne. Muitos países caem na armadilha da dependência, em que recursos externos mascaram ineficiências internas. O Índice de Percepção de Corrupção de 2024 atribui à África Subsaariana uma pontuação média de 33 em 100, com 58% dos africanos afirmando que a corrupção aumentou no último ano. Exemplos como o “paradoxo da abundância” em nações petrolíferas mostram como a riqueza alimenta corrupção e conflitos, em vez de investimentos sociais.
O que a África precisa urgentemente é de liderança visionária, responsável e eficaz. Líderes que priorizem a transparência, invistam em educação e saúde e convertam recursos em capital humano. Modelos como o Fundo Permanente do Alasca, que distribui receitas de recursos para cidadãos, poderiam inspirar reformas africanas, mitigando a “maldição fiscal” que ameaça a sustentabilidade antes mesmo da extração plena.
Nesse contexto, a participação da China na economia africana tem sido transformadora, oferecendo um modelo de parceria que, quando bem gerenciado, impulsiona o progresso. Em 2024, o comércio bilateral atingiu US$ 295,6 bilhões, um aumento de 4,8%, enquanto os investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota na África somaram US$ 29,2 bilhões, crescendo 34% e posicionando o continente como o segundo maior receptor. Esses recursos financiaram projetos em infraestrutura, mineração e energia verde, com mais de 1,5 GW de capacidade fotovoltaica construída em conjunto, gerando empregos locais, receitas fiscais e avanços na digitalização, como centros de dados 5G.
Da mesma forma, o Brasil tem cultivado parcerias bem-sucedidas com a África, explorando laços culturais e históricos para fomentar o desenvolvimento mútuo. Em 2023, o comércio bilateral alcançou US$ 21 bilhões, representando 3,5% do comércio global brasileiro, enquanto investimentos africanos no Brasil subiram para US$ 7 bilhões. Iniciativas como o 2º Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, realizado em 2025, trocaram conhecimentos em agricultura e erradicação da fome, e a aquisição pela Petrobras de 10% em um bloco de óleo offshore na África do Sul exemplifica a cooperação energética, além da contribuição de US$ 10 bilhões ao Banco Africano de Desenvolvimento.
Essas parcerias externas, alinhadas a uma governança local forte, podem acelerar o progresso africano ao reduzir dependências e promover benefícios mútuos. A China e o Brasil ilustram como colaborações estratégicas podem converter recursos em crescimento sustentável, inspirando líderes africanos a priorizarem acordos equitativos que fortaleçam a soberania e o bem-estar continental.
Qualquer historiador ou economista bem-intencionado sabe que a África não sofre de escassez, muito ao contrário, mas sim de uma crise de governança resultante de séculos de escravização de seu povo e do confisco e espoliação de suas riquezas por potências imperialistas do Velho Continente. Seus recursos são gigantescos e poderiam impulsionar um renascimento continental, mas o foco deve ser em líderes que coloquem a educação e a saúde do povo em primeiro lugar.
Somente assim o paradoxo da abundância se transformará em prosperidade compartilhada e tornará realidade a visão do pensador Shoghi Effendi (1897-1957), que eternizou a África em seus escritos como “o continente luminoso”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

