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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Na sombra do espiritual, smartphones devoram o real

O real, que deveria ser vivido plenamente, é frequentemente sacrificado em nome de uma validação digital que se tornou o novo oxigênio social

Uso do celular (Foto: Freepik )

Duas fotografias do repórter da Associated Press, Carlos Barria, ilustram vividamente a essência do primeiro quarto do século XXI: a incessante disputa entre a realidade palpável e o universo digital. Em uma das imagens, uma freira, inserida em uma multidão, transborda emoção, com lágrimas escorrendo e uma expressão que mescla êxtase e devoção. Na outra, o mesmo cenário revela um contraste marcante: ao redor dela, mãos erguidas seguram smartphones, ansiosas para capturar o momento, como se a experiência só se tornasse válida ao ser transformada em pixels. Essas imagens refletem os tempos líquidos descritos pelo sociólogo Zygmunt Bauman, onde a solidez das conexões humanas se dissolve na fluidez das interações virtuais, e o excesso de virtualidade aprofunda a carência do real.

Bauman, em sua teoria dos tempos líquidos, aponta para a fragilidade das relações e experiências em uma era marcada pela efemeridade. O real, que deveria ser vivido plenamente, é frequentemente sacrificado em nome de uma validação digital que se tornou o novo oxigênio social. Essa competição insana entre o que se vive e o que se exibe reflete uma sociedade que, como uma nau sem âncora, navega à deriva entre a autenticidade e a performance, incapaz de ancorar-se no presente.

Um exemplo claro disso é o comportamento de quem vai a um show de Chico Buarque ou a uma ópera como La Traviata. Em vez de se entregar à magia das melodias e das palavras, muitos preferem empunhar seus iPhones, obcecados em encontrar o ângulo perfeito para a gravação. A mente, longe de estar imersa no momento, está focada na qualidade do vídeo, na edição futura e na estratégia de publicação nas redes sociais – seja durante o evento ou após uma curadoria detalhada. A experiência real, que poderia ser um bálsamo para a alma, é trocada por uma busca frenética por likes, transformando o instante em um troféu digital, tão fugaz quanto uma brisa de verão.

Outro fenômeno que ilustra essa desconexão é a compulsão por documentar o cotidiano, como se cada gesto trivial fosse uma obra-prima digna de exposição. Fotografar o prato servido no restaurante, o café sendo preparado na máquina, a capa de um livro na livraria ou até mesmo o ato de escovar os dentes tornou-se uma prática comum. Essas ações, antes banais, são agora elevadas a um pedestal virtual, como se fossem um grito desesperado por relevância em um mar de conteúdos efêmeros. É como se a vida, sem o filtro das redes, perdesse seu brilho – um fenômeno que Bauman descreveria como a liquefação da privacidade em nome da visibilidade.

O narcisismo, por sua vez, emerge como uma epidemia do “Narciso 2.1”, um contraponto ao COVID-19, onde o “2.1” simboliza o século tecnológico que amplifica o desejo de ser visto. Filtros são usados em excesso, borrando a linha entre o real e o imaginário, o autêntico e o fantasioso. Selfies perfeitas, com peles impecáveis e cenários idealizados, criam uma narrativa de vida irreal, alimentando uma busca incessante por atenção. Essa prática é um espelho distorcido, refletindo não quem somos, mas quem desejamos parecer ser, em um ciclo vicioso de validação externa.

A adição de informações falsas ou exageradas é outro sintoma dessa era. Publicações beirando o nonsense – como afirmar que se comeu uma nuvem no café da manhã – são criadas com o único intuito de atrair curtidas e compartilhamentos. A verdade torna-se secundária, enquanto a performance digital reina, evidenciando a fluidez moral que Bauman associa aos tempos líquidos, onde valores sólidos cedem espaço à superficialidade e à busca por atenção.

Por fim, celebridades expõem suas vidas pessoais com uma intensidade que choca. Atrizes e surfistas, por exemplo, transformam disputas pela guarda dos filhos em verdadeiros reality shows virtuais, com trocas de farpas e acusações de adultério expostas ao público. O que deveria ser privado é lançado ao mundo, como se a dor precisasse de uma audiência para ser validada. Esse fenômeno é uma dança macabra entre o íntimo e o coletivo, onde a exposição se torna moeda de troca por relevância.

As imagens de Carlos Barria, ao capturarem esse contraste entre a emoção genuína e a obsessão por registrá-la, nos convidam a refletir: até que ponto estamos vivendo, e até que ponto estamos apenas performando? Em um mundo líquido, onde o virtual engole o real como um rio voraz, talvez seja hora de resgatar a solidez das experiências que nos conectam ao que realmente importa – ao toque, ao som, ao sentir. Não à toa, algumas associações de repórteres europeus já consideram essas duas fotos como francas favoritas para o prêmio de melhor foto do ano, um reconhecimento que sublinha a força de um registro que desnuda a dualidade do nosso tempo.

Essa tensão entre o físico e o virtual também pode ser vista por uma perspectiva espiritual. Na Fé Bahá’í, a realidade física é entendida como uma metáfora do mundo espiritual, funcionando como um reflexo de verdades divinas em formas materiais. ‘Abdu’l-Bahá, uma figura central dessa fé, ensina que o universo tangível é como uma sombra do reino celestial, afirmando: “O mundo material é a sombra do mundo espiritual. A sombra depende daquele que a projeta, mas a realidade está no objeto que a origina”. Talvez, ao nos perdermos no virtual, estejamos apenas perseguindo sombras, esquecendo-nos da luz que as projeta. Esse é o tempo em que vivemos – um tempo de reflexos, mas também de possibilidades para reencontrar o essencial.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.