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Francisco Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Membro da Frente Brasil Popular do ES

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Não confunda alhos com bugalhos

A responsabilização aos autores pela intentona bolsonarista – militares e civis – é um passo na justiça de transição reversa

Julgamento do núcleo central da trama golpista na Primeira Turma do STF - 10 de setembro de 2025 (Foto: Victor Piemonte/STF)

Lula cometeu um baita sofisma ao afirmar que a condenação dos generais golpistas representa um acerto de contas com o passado. Os militares golpistas do 8 de janeiro, da recente tentativa de golpe em 2023, foram processados, condenados e estão indo para a cadeia pela intentona que protagonizaram – e que não lograram êxito. Mas o “passado” ao qual se faz referência não é esse. O passado é o golpe militar de 1964, realizado com ampla participação civil e até religiosa. Nesse sentido, não houve qualquer acerto de contas com a história.

Acerto com o passado não é uma questão de saber se os responsáveis estão vivos ou mortos. Trata-se de as Forças Armadas reconhecerem oficialmente que deram um golpe em 1964, assumirem a responsabilidade histórica, comprometerem-se publicamente a nunca mais atentar contra a democracia e pedirem perdão pelos inúmeros malefícios produzidos por aquele regime.

A ditadura inaugurada em 1964 colocou cerca de meio milhão de brasileiros sob suspeição; 200 mil foram investigados; mais de 20 mil pessoas foram torturadas, entre elas 95 crianças e adolescentes. Além disso, 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por militares; 7,5 mil membros das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros foram presos, muitos deles torturados e expulsos de suas corporações. No total, foram bem mais de 11 mil mortos, incluindo indígenas e camponeses, e cerca de 210 brasileiros permanecem desaparecidos. Entre os 434 mortos e desaparecidos, oficialmente registrados pela Comissão Nacional da Verdade, estima-se que 42 eram negros e 45 mulheres. Somam-se a isso 536 intervenções em sindicatos, a extinção e ilegalização de entidades estudantis — como AMES, UNE e a UBES —, a violação sistemática de correspondências e de sigilos bancários, o uso de grampos telefônicos, e o fomento ao ódio e à delação, inclusive entre familiares. (Números em constante atualização pelos pesquisadores).

O AI-5 levou uma parte significativa da esquerda revolucionária a optar pela luta armada. Com esse Ato Institucional, o Congresso Nacional foi fechado e o habeas corpus para os chamados crimes políticos foi abolido.

Além de prisões e cassações, esse ato instituiu, na prática, uma licença para cassar, caçar, sequestrar, torturar e matar, sangrando uma geração inteira de brasileiros.

Por nenhum desses crimes foram efetivamente criminalizadas e condenados os generais, torturadores e assassinos daquele feroz ditadura – mancha indelével da nação.

O Brasil, portanto, não pode falar em reconciliação com o seu passado. O que se impõe é olhar criticamente para ele; relembrar, responsabilizar, julgar e condenar àqueles que comandaram e executaram o terrorismo de Estado.

O país tampouco se acertou com seu o passado no que diz respeito à Lei da Anistia, cuja interpretação capciosa transformou-a em uma suposta anistia recíproca — algo que não está escrito na lei. Houve uma corrupção deliberada do conceito de crime conexo. Qualquer estudante de Direito sabe que crime conexo é aquele ligado ao crime principal: pode ser anterior, como preparatório; concomitante; ou posterior, como consequência direta. Tortura, assassinato e desaparecimento forçado jamais poderiam ser enquadrados como crimes conexos.

Acertar contas com a história não se reduz a condenações episódicas. Exige responsabilização estrutural, reparação efetiva dos danos, reconhecimento institucional das violações e condenação política e moral de quem sustentou e executou o terrorismo de Estado. Sem esse enfrentamento, o país permanece aprisionado a uma memória inconclusa e a uma democracia frágil, permanentemente exposta à reincidência autoritária.

Nós da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça, continuamos vigilantes às aparentes verdades que escondem o passado tenebroso dos 21 anos de arbítrio da ditadura militar. 

Queremos saber dos mortos e desaparecidos, em que circunstâncias os mataram, onde estão enterrados e recuperar seus restos mortais e as famílias poderem viver os seus lutos.

O passado da ditadura militar que povoa nossos pesadelos vai ser remoído sempre por nós sobrevivente, pelos nossos filhos e netos até a sua redenção.

A responsabilização aos autores pela intentona bolsonarista – militares e civis – é um passo na justiça de transição reversa, do presente para o passado, mas ainda não é um acerto com o pretérito do golpe de 1964 e consequências. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.