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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Não existe pacificação com anistia

O Brasil dá exemplo ao mundo ao enfrentar seus golpistas

Jair Bolsonaro durante interrogatório no STF (Foto: Gustavo Moreno/STF)

A história política brasileira é marcada por golpes de Estado, quarteladas e rupturas institucionais. Em 1964, a deposição de João Goulart inaugurou uma ditadura de 21 anos, sob a justificativa de “salvar a democracia” dos próprios cidadãos. Ao final desse ciclo autoritário, a sociedade optou pela chamada Lei da Anistia de 1979, que acabou transformando-se em um pacto de esquecimento: vítimas e algozes foram colocados no mesmo patamar, como se tortura e assassinato político pudessem ser relativizados em nome de uma “pacificação nacional”.

Esse equívoco deixou marcas profundas. Ao não punir os responsáveis por crimes de Estado, o Brasil transmitiu uma mensagem clara às elites civis e militares: conspirar contra a democracia não gera consequências. Golpes podem ser tentados e, se fracassarem, bastará aguardar o tempo passar para que a anistia chegue como um bálsamo de impunidade.

O momento inédito de hoje

É exatamente contra essa tradição de condescendência que o Brasil de hoje se levanta. A tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 não foi um ato isolado, mas a culminância de uma estratégia prolongada de erosão das instituições, liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e apoiada por segmentos militares e civis. A diferença é que, desta vez, as instituições democráticas resistiram.

A investigação rigorosa, os julgamentos no Supremo Tribunal Federal e a responsabilização penal dos envolvidos representam algo inédito na história do país. Pela primeira vez, golpistas estão sendo tratados como criminosos e não como “atores políticos equivocados”. E mais: militares de alta patente, ao lado de Bolsonaro, estão nos bancos dos réus, algo impensável em décadas passadas. O Brasil mostra que democracia não se tutela em quartéis, mas se defende com instituições firmes, regras claras e justiça imparcial.

As Forças Armadas e o limite democrático

Um ponto central desse processo é a relação com as Forças Armadas. Durante décadas, manteve-se a ficção de que os militares seriam “poder moderador”, autorizados a intervir em nome da ordem. Essa leitura distorcida da Constituição serviu como desculpa para constantes ameaças e chantagens. O processo em curso desmonta essa narrativa.

Ao contrário do passado, em que a farda garantia imunidade, hoje a mensagem é inequívoca: quem conspira contra a democracia, mesmo com estrelas no ombro, deve responder perante a lei. Esse é um divisor de águas na consolidação de uma democracia madura.

O olhar do mundo

Não por acaso, a imprensa internacional acompanha atentamente cada etapa desse processo. Em um momento em que democracias enfrentam riscos crescentes — da ascensão da extrema direita nos EUA e na Europa ao autoritarismo em diferentes regiões —, o Brasil surge como exemplo de resistência institucional.

Enquanto Donald Trump, nos Estados Unidos, tenta se escudar em manobras jurídicas para evitar condenações por incitar a invasão do Capitólio, o Brasil mostra que não há convivência possível entre democracia e impunidade. O contraste é pedagógico: aqui, golpistas enfrentam a Justiça; lá, ainda disputam eleições.

Pacificação não é esquecimento

É preciso ser claro: pacificação não se faz com anistia. A reconciliação verdadeira nasce da verdade e da responsabilização. Os que clamam por “virar a página” repetem o erro histórico que já custou caro ao Brasil. Uma democracia que não pune seus inimigos não se fortalece. Apenas adia o próximo ataque.
O que estamos vivendo hoje é, sim, inédito na história brasileira. É o momento em que a democracia se afirma como soberana, sem tutelas, sem pactos de silêncio e sem condescendência com criminosos.

Se o Brasil tiver a coragem de seguir esse caminho até o fim, terá não apenas reparado sua própria história, mas também oferecido ao mundo uma lição fundamental: a democracia só sobrevive quando seus agressores são responsabilizados.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.