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José Carlos Moreira da Silva Filho

Professor na Escola de Direito da PUCRS e Sócio Fundador da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia - ABJD

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Não foi tortura, Dr. Gilmar?

Se o objetivo último da Lava-Jato era atingir um partido político inteiro, a ditadura teve como objetivo afastar e erradicar os grupos e partidos trabalhistas, comunistas, socialistas e qualquer outro que contrariasse sua visão autoritária, reacionária e elitista

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No último dia 09 de fevereiro, a 2ª turma do STF decidiu por 4 votos a 1 que a defesa do Ex-Presidente Lula tem o direito de ter acesso ao material apreendido na Operação Spoofing. Para além da acertada decisão, o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes foi uma atração à parte. Em sua manifestação, não apenas as palavras, mas também os gestos, a ênfase e o semblante expressavam o vivo repúdio ao conluio entre Moro (juiz) e Dallagnol (promotor), que violou sem muita cerimônia as normas mais básicas do Código de Processo Penal e da Constituição relacionada à matéria.

Eis um apanhado geral das frases de Gilmar Mendes em seu voto que expressa bem o que afirmei acima:

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“É de corar frade de pedra”. “É o maior escândalo judicial da História da humanidade. É disso que nós estamos falando”. “Dra. Claudia, é sua instituição que está em jogo. Não atire no mensageiro”. "A Lava Jato envergonha os sistemas totalitários, que nunca tiveram esta criatividade". "Nada disso teria ocorrido se não houvesse a cumplicidade da mídia". “Ou os diálogos (da operação Spoofing) são reais ou os Hackers de Araraquara são notáveis ficcionistas, eles escreveram tudo isso". “Veja que tipo de gente nós produzimos, Dra. Claudia, numa instituição como o Ministério Público”. "Agora já não é mais um julgamento de um caso. Estamos julgando se somos cúmplices desse CPP russo". “Não foi tortura, Dra. Cláudia?”.

Me atenho neste texto à última frase citada, e o faço provocado também pelo excelente artigo da jornalista Denise Assis intitulado “Lava-jato é filha da impunidade”, publicado em 10 de fevereiro pelo Brasil 247. No essencial, Denise Assis disse tudo, mas creio que a questão por ela levantada pode ser ampliada e permite diversos ângulos, e espero que muitos doravante o explorem.

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Ao se referir ao vil procedimento de ameaçar futuros delatores que já estão presos e à disposição absoluta dos procuradores da lava-jato, para deles obter delações que servissem às teses de acusação (que a esta altura eram também as teses da sentença, mesmo sem sequer ainda ter sido escrita, como mostram os diálogos explícitos revelados primeiramente pelo The Intercept, e agora, em muito maior abundância na Spoofing), Gilmar Mendes pergunta à Subprocuradora Cláudia Sampaio Marques: “Não foi tortura, Dra. Cláudia?”. 

Na Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que entrou em vigor no ordenamento interno brasileiro em 1989, está definido em seu Art.1º que:

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“Para os fins da presente Convenção, o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”.

Portanto, para que haja tortura não é indispensável que haja a agressão física. O sofrimento agudo pode ser mental. E será tortura caso tenha sido infligido, para se obter informações ou confissões, por um funcionário público, a não ser que o sofrimento em questão tenha decorrido de sanções legítimas. 

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Em seu artigo, Denise Assis destaca a passagem do voto de Gilmar Mendes na qual ele lê um trecho das conversas obtidas pela Spoofing em que Deltan contava que havia ameaçado uma das pessoas presas pela Lava-Jato de enviá-la para o “IML de Curitiba” (apelido de um presídio temido pelas condições precárias e violentas), vindo a obter logo em seguida a disposição a delatar e a “cooperar”. Logo após a leitura, pergunta Gilmar Mendes: “É lícito isso?” 

Se entendermos que não é lícito, e assim entendo, podemos ecoar a mesma pergunta feita pelo Ministro: “Não foi tortura, Dra. Cláudia?” Não é de se espantar que a figura da delação premiada, em um país que jamais passou a limpo a tortura, as mortes e desaparecimentos produzidos pela ditadura civil-militar, tenha em sua prática se aproximado tanto do mesmo modus operandi da tortura, da mesma lógica. Se o objetivo último da Lava-Jato era atingir um partido político inteiro, especialmente a pessoa que mais intensamente o representa, cuja história com ele se confunde, e explicitamente favorecer seus adversários políticos, a ditadura teve como objetivo afastar e erradicar os grupos e partidos trabalhistas, comunistas, socialistas e qualquer outro que contrariasse sua visão autoritária, reacionária e elitista.

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Em um país que bloqueou e continua bloqueando a responsabilização dos agentes torturadores da ditadura, a mensagem que se passa é que a tortura não é algo tão grave assim, é apenas um deslize que pode ser tolerado. E esta mensagem esteve na base subliminar de gerações de juristas a partir da redemocratização, como Denise Assis lembra muito bem.  

Pois bem, voltando um pouco no tempo, ao ano de 2010, veremos o Ministro Gilmar Mendes ser um dos sete votos contra a ADPF 153 no STF. Esta ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, à época encabeçado pelo inestimável advogado Cézar Brito, pedia que o STF declarasse a Lei de Anistia de 79 incompatível com a Constituição quando é interpretada para anistiar os agentes da ditadura. O mesmo Ministro Gilmar Mendes (que, estupefato diante da Dra. Cláudia, pergunta: “Não foi tortura?”) não apenas votou pela manutenção da mesma interpretação da ditadura sobre a anistia como também a fundamentou na ideia de que a Constituição de 1988 estava limitada a um “pacto” representado na Emenda Constitucional 26/85. 

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A EC 26/85 foi o instrumento normativo que convocou a Constituinte e que também repetiu quase todos os termos da Lei de Anistia de 79 em seu texto. Afirmou o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADPF 153 em abril de 2010, que a Constituição de 1988 já nasceu compromissada com esse “pacto” e, portanto, poderia aceitar a anistia aos torturadores da ditadura. Ora, esqueceu-se de mencionar o Ministro que esta Emenda fazia parte da ordem constitucional autoritária e que a Constituinte é, por definição, soberana, e, ainda, que em nenhuma parte do texto da Constituição gerada está o reconhecimento de um pacto para anistiar torturadores. A Constituição de 1988 considera a tortura crime que não pode ser anistiado (Art.5º, XLIII), e quando se refere à anistia, no seu Art.8º. do ADCT, a prevê somente para os que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro (e não para os agentes públicos que os perseguiram).    

Reproduzir a mesma interpretação da ditadura para a lei de anistia de 79, e fazê-lo sob a égide da ordem constitucional de 88, é, portanto, uma opção política da maioria dos membros do judiciário brasileiro que até agora se manifestaram sobre o tema, e entre eles Gilmar Mendes, opção que é inclusive contrária ao direito internacional dos direitos humanos, como deixam bem claro as duas sentenças condenatórias contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Gomes Lund e Caso Herzog), sentenças que seguem sendo sistematicamente descumpridas e desconsideradas pelo Estado brasileiro.

Dá pra gente perguntar ao Ministro Gilmar Mendes: “Não foi tortura, Dr. Gilmar?” 

O agente público que pratica a tortura, em todas as suas formas e matizes, se alimenta da impunidade dos crimes da ditadura, que foi chancelada pelo Ministro Gilmar Mendes e outros 5 Ministros e 2 Ministras à época, que votaram contra a ADPF 153. Então não é de se espantar tanto assim que os procedimentos da lava-jato se multipliquem como atos normais e aceitáveis. Assim como não é de se espantar que as conversas reveladas pela Spoofing demonstrem cabalmente o conluio entre juiz e procurador para condenar o Ex-Presidente Lula antes mesmo de ele se transformar em réu (o que recomenda ao STF que anule não apenas a sentença, mas todo o processo, desde a aceitação da denúncia). Este conluio sempre foi claro e visível, mesmo antes dessas conversas virem à luz. Portanto, repito, também não é de se espantar.   

Mesmo esclarecendo esta contradição entre o Gilmar Mendes de 2010 e o de 2021, oxalá o Ministro continue com o seu espanto e que suas/seus pares o sigam nisso e decidam mais adiante pela óbvia e ululante nulidade tanto do processo do triplex quanto o do sítio de Atibaia, desde a aceitação das denúncias. 

Para terminar, é preciso registrar que toda essa histórica complacência diante da tortura e suas diversas formas de manifestação é também fruto de um otimismo insosso, de um ufanismo delirante, e de um medo mal disfarçado e patológico. Encastelou-se no país uma aversão a reconhecer sua história de violência, dor e vilania. Para muita gente, o país do Carnaval e do samba não pode ser o país da tortura. No entanto, tal esquecimento representa uma segunda violência, pois a memória dos que foram seviciados, assassinados e desaparecidos é ela mesma negada e menosprezada, e com ela a responsabilidade dos agentes públicos que cometeram tais atos, o que gera um ciclo de repetição. Não é de se espantar, portanto, que o General Villas-Boas afirme em suas memórias, recentemente publicadas pela FGV, de que a instauração da Comissão Nacional da Verdade foi um dos fatos que sedimentaram o repúdio dos militares ao Governo de Dilma Roussef e o antipetismo de caserna em geral. A verdade incomoda sobretudo aos torturadores e aqueles que os defendem.

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