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Camilo Vannuchi

Jornalista, escritor, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela USP, membro da Comissão Municipal da Verdade da Prefeitura de São Paulo

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Não se nasce machista, torna-se

Fica uma grande interrogação: como a educação conseguirá erradicar todas as formas de discriminação, como é meta do Plano Nacional de Educação, sem incluir as mulheres e a população LGBT? 

Fica uma grande interrogação: como a educação conseguirá erradicar todas as formas de discriminação, como é meta do Plano Nacional de Educação, sem incluir as mulheres e a população LGBT?  (Foto: Camilo Vannuchi)
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Fechando a instigante semana da campanha #AgoraÉQueSãoElas, em que colunistas homens foram convidados a franquear seu espaço na imprensa para uma provocadora e necessária ocupação feita por autoras mulheres, tenho a satisfação de apresentar o texto a seguir, enviado pela Camila Moreno e pela Claudia Dutra. Camila é coordenadora geral de Direitos Humanos do Ministério da Educação. Claudia é diretora de Políticas de Educação em Direitos Humanos no mesmo ministério. Minha empolgação com o ENEM mais festejado — e controvertido — da história do exame, e minha defesa permanente da inclusão da temática de gênero nas escolas me fazem tiete do trabalho das duas. Por isso meu envaidecido agradecimento pelo prestígio de poder publicar este artigo em primeira mão. Obrigado, Camila e Claudia, vocês são gigantes. Espero em breve ver vocês publicando muito mais, quem sabe toda semana, essas palavras tão fundamentais e urgentes para que possamos de fato caminhar no sentido de uma pátria — ou mátria — educadora.

O título deste artigo é uma releitura da famosa frase de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher, torna-se”, que apesar de ter sido publicada em 1949, ganhou novamente as páginas de jornais, de revistas e da internet por estar presente em uma questão do ENEM 2015. Defesas e ataques à questão, ao ENEM, ao MEC, ao INEP, a Simone e às feministas foram protagonizados por políticos e ativistas. O mesmo ENEM trouxe como tema da redação “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, trazendo à tona o debate sobre a relação entre a educação e as questões de gênero.

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Desde o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, o debate sobre ideologia de gênero ganhou repercussão nacional, quando a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados decidiu, pelo voto da maioria diante de ampla ofensiva, alterar o texto que falava em “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” para “erradicação de todas as formas de discriminação”. A ofensiva teve continuidade na votação de muitos planos estaduais e municipais de educação. Da redação final de alguns planos a palavra gênero foi retirada, de outros, proíbe-se a sua manifestação e até que se fale "afeto" e "sexualidade" na escola.

Quem ataca a dita ideologia de gênero afirma que a mesma representa a ideia de “ausência de sexo”, já que a identidade de gênero é considerada uma construção social e por isso significaria uma ameaça à instituição família. Quem defende que questões de gênero sejam trabalhadas nas escolas afirma que, embora exista o sexo biológico, a sexualidade não é arbitrada, natural ou heteronormativa, e cada pessoa tem direito à sua identidade e à sua orientação sexual.

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Fica uma grande interrogação: como a educação conseguirá erradicar todas as formas de discriminação, como é meta do Plano Nacional de Educação, sem incluir as mulheres e a população LGBT? As decisões que restringem debates e defendem um respeito abstrato, sem a inclusão da valorização e do direito à diferença, são deslocadas da trajetória política educacional do país, que avança na conquista da democracia, e não encontram respaldo em nenhum movimento oriundo das escolas e universidades que avaliam como total retrocesso tentar coibir a liberdade de ensinar e de aprender, restringir a pluralidade de concepções e negar a diversidade humana na escola.

É importante ressaltar que gênero é um conceito científico, construído com bases acadêmicas, e forma um importante campo de pesquisa e produção de conhecimento no  Brasil e no mundo. Esse conceito trabalha a construção social da identidade feminina (e masculina) e trabalhá-lo na escola significa iniciar um processo de desconstrução do determinismo imposto tradicionalmente à condição de mulher como cuidadora, frágil e dependente. Esta desconstrução já impulsionou grandes transformações do nosso tempo ao questionar a hierarquização dos sexos e o papel de subordinação atribuído às mulheres na sociedade. Saindo da condição de sexo frágil, as mulheres passaram a lutar pelo seu espaço político, social e econômico, passaram a denunciar a opressão e avançaram na conquista da liberdade e dos direitos iguais.

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Se o conceito de gênero representa uma ameaça, é importante que se debata o que (ou quem) é ameaçado quando se abordam essas questões. Em nome de que e por que tenta-se impedir uma educação escolar que afirma a igualdade de gênero e denuncia a violência contra mulheres, lésbicas, gays, travestis e transexuais?

Quando se afirma a existência da ideologia de gênero, já se pensou que ela pode significar, na verdade, a existência de um padrão social que as mulheres (e homens!) devem cumprir? Que essa ideologia é imposta desde o nascimento, na orelha furada no primeiro dia, na boneca e na panelinha no primeiro aniversário, no aprendizado do “comportamento de mocinha”, na não-permissão para realizar as mesmas atividades de lazer, na obrigação de ajudar nas tarefas domésticas, na divisão das tarefas escolares que são "adequadas" para meninos ou para meninas, na naturalização da dor para objetivos estéticos, na maternidade tratada como destino, na incorporação da cultura do cuidado que acaba por nortear escolhas universitárias e profissionais e que, mesmo quando rompidas, representam um salário menor? Se a ideologia de gênero de fato existe, ela não representa a cultura patriarcal enraizada na nossa sociedade e reafirmada todos os dias?

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Se o machismo e a heteronormatividade estão enraizados na sociedade, também estão nas escolas e universidades, materializadas na gestão, na formação docente, nas práticas de sala de aula, nos materiais didáticos que reproduzem padrões de comportamento e naturalizam discriminações. É, portanto, tarefa educativa identificar e questionar a cultura patriarcal que perpassa o currículo escolar e, a partir do conhecimento crítico, atuar na sua transformação. O ENEM faz essa interlocução sobre a reprodução de estigmas e preconceitos e, mais do que isso, contextualiza a desigualdade de gênero levantando o tema da persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Se a educação tem a função de propiciar a cada geração pensar e transformar o mundo em que vive, iniciativas como a do ENEM, que colocou quase 6 milhões de brasileiros a refletir, de forma direta, sobre a construção de identidades de gênero e a violência contra a mulher, devem ser não apenas parabenizadas, mas potencializadas e disseminadas todos os dias, na construção de uma educação que seja questionadora, que esteja conectada com as transformações do seu tempo, que combata de fato todas as discriminações. Uma educação, enfim, inclusiva para todos e todas.

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