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Eugênio Bucci

Professor Titular da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Existe democracia sem verdade factual? (Editora Estação das Letras e Cores, 2019)

39 artigos

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Não, você não viu esse filme antes

"Para entender o poder no Brasil, não adianta nada olhar para os EUA", escreve Eugenio Bucci

(Foto: Helena Iono)
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Por Eugênio Bucci 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Um velho editor de revistas, já falecido, costumava dizer que, se você quer saber o que vai acontecer com o mercado editorial no Brasil daqui a dez anos, basta olhar para o mercado dos Estados Unidos agora. Seguindo sua máxima, tomou decisões acertadas – errou algumas vezes, é verdade, mas acumulou um saldo para lá de positivo.

Quanto à política, o espelhamento diferido não dá certo. O que se passa na terra de Tio Sam hoje não se repetirá na Terra do Sol amanhã. Aqui, Deus e o diabo se engalfinham por outras vias. É fato que, de uns tempos para cá, a estupidez do trumpismo tem servido de trailer para a boçalidade bolsonarista, mas, neste caso, o que existe é mera imitação: os seguidores do presidente da República – este que aí ainda está, embora já não esteja – são apenas um plágio repugnante dos supremacistas brancos que invadiram o Capitólio, mais ou menos como as chanchadas da Atlântida eram uma paródia feliz do cinemão de Hollywood.

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Isso posto, expliquemos. O mercado editorial brasileiro, especialmente na segunda metade do século XX, seguiu o modelo que dava certo em Nova York e adjacências: copiou o organograma das empresas, as soluções gráficas e até os manuais de estilo. Donde, se você precisa antecipar uma tendência ou outra do mercado editorial, vale a pena buscar exemplos nos Estados Unidos. Já no universo da política, é tudo diferente: a forma dos partidos de lá não se compara com a bagunça tropical, isso sem falar nas regras eleitorais, nas convicções religiosas de fundo, nas colorações do racismo, na cultura. Logo, para entender o poder no Brasil, não adianta nada olhar para lá.

Vale mais olhar para a Argentina

Calma, não vá se irritar. Não resolve nada deletar esse texto e mudar de assunto. Gostemos ou não, há mais de Buenos Aires em Brasília do que sonha a nossa petulância colonizada. Os hermanos tiveram peronismo lá, a gente teve getulismo aqui. Nós tivemos ditadura militar, eles também. Kirchnerismo lá, lulismo aqui. Sim, todo mundo sabe que são coisas distintas, por supuesto, mas, Madre de Dios, como são parecidas – são parecidas, sobretudo, quando contrastam.

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Isso não significa que, olhando a cena política portenha, a gente vislumbre o que se vai dar conosco no futuro próximo. O que existe entre os dois países é uma identidade crispada, canhestra, que gera uma aderência geral por meio de traços que, isoladamente, se repelem. É como se fôssemos rascunhos invertidos uns dos outros – rascunhos que nunca chegaram a uma versão definitiva do que quer que fosse. Brasil e Argentina se irmanam pelo que discrepa, pelos opostos; acima de tudo, irmanam-se porque padecem de tormentos análogos (homólogos) que não se resolvem jamais.

Presentemente, muitos de nós, brasileños, temos visto com gosto o filme Argentina, 1985 (disponível, por enquanto, na Amazon Prime). Dirigido por Santiago Mitre e estrelado por Ricardo Darín, o longa-metragem mostra o julgamento que, em 1985, condenou a cúpula das Forças Armadas por graves violações dos direitos humanos durante a ditadura (1976-1983). Crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação (em massa) de cadáveres foram expostos e comprovados no tribunal. Por mérito do acusador, o promotor público Julio Strassera (Darín), a Justiça mandou para a cadeia tiranos de alta patente, entre eles Rafael Videla. (Pouco tempo depois, em 1990, Videla foi posto em liberdade pelo presidente Menem, mas, em 1998, voltou a cumprir sua prisão perpétua. Morreu encarcerado em 2013.)

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O filme é uma beleza. Ganhou o Prêmio da Crítica no Festival de Veneza e deve brilhar no Oscar do ano que vem. Com narrativa linear, a ponto de ser didática, segue o que os cinéfilos chamariam de “decupagem clássica”: tem começo, meio e fim, necessariamente nessa ordem. Os figurinos, os cenários e até os automóveis restauram vivamente o visual do ano em questão, tudo com naturalidade, sem afetações. Graças a uma produção meticulosa e mesmo obsessiva, a gente volta quatro décadas no tempo – e agradece.

Para o espectador brasileiro, porém, o ponto alto não são os esmeros plásticos, mas o sentido político da obra. O que dá liga é o contraste. Ao longo da sessão, a gente se pergunta sem parar: por que lá, na Argentina, eles puseram os comandantes da tortura atrás das grades e, aqui, a gente passou pano?

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Certamente, há teorias diversas e pertinentes. “É que na Argentina o ponto de equilíbrio é outro”, disse certa vez um crítico literário de São Paulo. De fato, aqui existe uma tara considerável por acochambrar o inconciliável, por anistiar o inanistiável. No Brasil, parece que até o Estado, como se fosse pessoa física, é merecedor de perdões, de indultos e de tapinhas nas costas. A impunidade impera como a única receita de pacificação.

E agora? Qual a moral deste artigo aqui? Qual o caminho mais acertado: punir ou esquecer? Desgraçadamente, tanto faz. O pior de tudo é que dá na mesma. Os dois rascunhos, Brasil e Argentina, divergem quanto aos roteiros para se igualar no desfecho: no final, dão igualmente errado. Tudo termina mal, até quando recomeça.

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(Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.)

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