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Sara Goes

Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net

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Nardes e o filme que já vimos

"Suspensão de recursos do Pé de Meia por Narde ecoa o mesmo modus operandi utilizado para derrubar Dilma", escreve Sara Goes

Augusto Nardes (Foto: Samuel Figueira/Divulgação TCU)

O Tribunal de Contas da União (TCU), sob a relatoria de Augusto Nardes, suspendeu R$ 6 bilhões do programa Pé de Meia, um dos mais importantes projetos do governo Lula, criado para combater a evasão escolar e promover a inclusão de jovens de baixa renda na educação. Sabendo que o leitor é capaz de identificar o gesto de Musk a oceanos de distância, não acho necessário explicar os pormenores das intenções de Nardes. Estou falando de Nardes. A decisão, justamente quando o Pé de Meia começava a dar frutos reais, é, no mínimo, um movimento estratégico e tão casto quanto as intenções de um trilionário fascista.

Augusto Nardes, ao suspender os recursos do Pé de Meia, não apenas colocou em risco a continuidade de um programa que beneficia quase 4 milhões de jovens, mas também acendeu um alerta sobre o papel do TCU no cenário político atual. Nardes, um ministro com profundas conexões com o agronegócio e um histórico político que remonta à ditadura militar e ao apoio irrestrito a Jair Bolsonaro, carrega consigo um viés ideológico claro que o coloca como parte integrante das forças que, com o empoderamento da extrema direita no Brasil – impulsionado, entre outros fatores, pela ascensão de Donald Trump nos EUA – buscam desestabilizar o governo Lula e suas figuras mais promissoras, como Camilo Santana.

O fato de Nardes ter se manifestado contra o Pé de Meia – um programa criado por meio de uma lei aprovada no Congresso Nacional e com respaldo de diversos órgãos como a AGU, CGU e o Ministério da Fazenda – deixa claro que a suspeita de uma motivação política não é infundada. A argumentação técnica de Nardes, levantando questionamentos sobre a criação do fundo e seu impacto no arcabouço fiscal do país, parece mais um pretexto para desgastar um dos principais nomes do PT, Camilo Santana, especialmente em um momento no qual a disputa interna dentro do governo Lula por uma possível sucessão está acirrada.

Durante sua entrevista ao podcast As Cunhãs em 19 de outubro de 2024, Camilo Santana demonstrou um posicionamento firme em defesa do programa Pé de Meia, destacando sua legalidade e a importância social para milhões de jovens de baixa renda. Ao ser perguntado sobre o questionamento do TCU o Ministro se mostrou reticente de sua continuidade, baseado na crença de que não seria benéfico ou eficaz para extrema direita interromper um programa social de sucesso a troco de uma disputa política. “Quem vai tirar o dinheiro dos meninos? Isso é um retrocesso. Esse programa está ajudando os jovens, e é por isso que estamos falando dele.”

Em outubro de 2024, Camilo Santana estava profundamente envolvido na campanha eleitoral de Fortaleza, que funcionava como um treinamento tanto para o PT em vista das eleições de 2026 quanto para o próprio Ministro, que precisava demonstrar sua capacidade de articulação ao presidente Lula e ao partido. Os três meses seguintes mostraram que a visão inicial de Santana se revelou, agora sim, ingênua. A disseminação de pânico social entre as camadas mais vulneráveis da população brasileira, a partir de uma mentira – e não de fake news – sobre a taxação do Pix, evidenciou que não há limites para o bolsonarismo quando se trata de disputar o poder político.

A lição que ficou clara para o ex-governador do Ceará foi que, no Brasil de 2025, a disputa política não tem compaixão nem limites. A extrema direita está disposta a utilizar todas as armas, até as mais sujas, para garantir seu espaço no poder e, se necessário, até a destruição do próprio país. A virulência é apressada: é preciso aproveitar a pequena – oremos – brecha que os discursos e gestos animalescos de Trump e dos cavaleiros do apocalipse tecnológico abriram, antes que a racionalidade, a oposição e a impopularidade alterem o pêndulo contra a extrema direita suicida.

Em outro ritmo, a corrida pela sucessão de Lula tem gerado atropelos e tropeços para o governo. A campanha midiática contra Haddad, que parece ainda resignado e imunizado pelos anos em que foi prefeito de São Paulo e ministro da Educação, ganhou força com o "Caso Pix", levando o próprio presidente Lula a dar-lhe uma bronca pública na primeira reunião ministerial. Com o aparente enfraquecimento de Fernando Haddad, a disputa entre ministros nordestinos de Lula se intensificou. No seio do PT, o poder de decisão tem se concentrado em torno de algumas figuras-chave, como os ministros ex-governadores Camilo Santana, Rui Costa e Wellington Dias. Embora todos possuam uma base sólida de apoio, é Camilo Santana quem, ao lado de Fernando Haddad, vem se destacando como uma das principais apostas para a continuidade do projeto petista no futuro.

Longe de compor o budejo coletivo em torno da ideia de que existe um problema singular da comunicação do governo — tese com a qual discordo por ela desconsiderar ou não entender as dificuldades contemporâneas de comunicação de forma mais ampla — ignorar um problema identificado e amplamente divulgado em outubro de 24, sem uma resposta midiática ou uma "vacina comunicacional", foi um erro. Como o presidente Lula anunciou em sua primeira reunião ministerial: 2026 será o ano de colheita.

É importante destacar que o golpe de Nardes tem como objetivo enfraquecer o governo, e não necessariamente articular seu impeachment, embora deputados federais Kim Kataguiri (UNIÃO-SP), Marcel van Hattem (NOVO-RS) e Ubiratan Sanderson (PL-RS) já tenham protocolado o pedido. Sonhar é de graça. O efeito colateral dessa ação, porém, é, em última instância, rifar Camilo Santana, o que beneficiaria outro ministro e, essencialmente, enfraqueceria a imagem de Lula em um dos programas mais exitosos de seu governo, justamente na sequência do terrorismo envolvendo o Pix. Agora, resta esperar que Sidônio Palmeira, à frente da Secretaria de Comunicação, consiga encontrar uma solução para contornar um problema que só cresceu.

Em um contexto de intensa polarização política e disputas internas dentro do PT, a crítica à legalidade de programas como o Pé de Meia também traz à tona o fantasma das pedaladas fiscais, que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016. O uso de argumentos fiscais para justificar ataques a programas e ações do governo petista se repete, agora com o objetivo de enfraquecer figuras políticas emergentes que podem representar uma ameaça ao projeto de poder da extrema direita e dos setores conservadores no Brasil.

A suspensão de recursos do Pé de Meia por Nardes, em um momento de crescimento e expansão do programa, ecoa o mesmo modus operandi utilizado para derrubar Dilma. E, assim como o impeachment da ex-presidente foi uma estratégia para desestabilizar o PT e abrir caminho para a ascensão de Temer e a agenda conservadora, a ação de Nardes parece seguir o mesmo roteiro. É como aquele filme que já vimos antes, onde as cenas se repetem: o objetivo é desestabilizar, vislumbrando uma futura troca de poder dentro do partido e um enfraquecimento das principais lideranças que poderiam dar continuidade ao legado de Lula. Mas, ainda estamos aqui, ocasionalmente brigando entre nós, mas sempre na resistência.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.