Narrativas de sangue e silêncio
A cada jornalista silenciado, o mundo fica mais cego — e a palavra narrativa, repetida sem escrúpulo, cava o túmulo da verdade compartilhada
Em um discurso recente no Vaticano, o Papa Leão XV falou aos jornalistas de todo o mundo como quem ergue uma tocha num campo de sombras.
“Fazer jornalismo nunca pode ser considerado um crime, mas sim um direito a ser protegido. A informação livre é um pilar que sustenta a construção das nossas sociedades, e por isso somos chamados a defendê-la e garanti-la.”
Suas palavras soaram como advertência e epitáfio. Em um planeta onde o ato de informar tornou-se perigoso, o simples gesto de contar o que se vê pode custar a vida.
Segundo dados da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), até meados de outubro deste ano, 38 jornalistas foram assassinados, 514 permanecem detidos, e 39 colaboradores da imprensa também estão presos por exercer o dever de informar. A liberdade de imprensa, em muitas nações, deixou de ser um direito — virou suspeita.
O Papa advertiu: “Devemos dizer não à guerra das palavras e das imagens; devemos rejeitar o paradigma da guerra.” Mas essa guerra está em curso — e o campo de batalha é a própria linguagem. As armas são hashtags, campanhas de difamação, algoritmos e linchamentos virtuais.
Em Gaza, segundo a Al Jazeera, mais jornalistas morreram em poucos meses do que em qualquer outro conflito desde 1945. O jornalismo, literal e simbolicamente, sangra.
Mais grave, porém, é o assassinato simbólico da verdade.
A palavra “narrativa” — antes nobre, associada ao esforço humano de compreender o mundo — foi sequestrada e transformada em disfarce para a mentira. Hoje, dizer “essa é a minha narrativa” equivale a proclamar que a realidade é opcional, que o fato é apenas uma versão entre tantas.
Nesse terreno movediço, o jornalismo se fragmenta em ruídos. Multiplicam-se manchetes que se bastam, subtítulos que prometem o que não entregam e textos que repetem o título como se fosse pensamento.
Há matérias tão rasas que uma formiga se afogaria nelas se caísse distraída — e o pior: morreria sem saber se estava em água ou café.
A busca por curtidas e cliques substituiu a busca pela apuração.
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) revelou que 361 repórteres estavam presos no mundo em dezembro passado, número que segue crescendo.
Na América Latina, a RSF contabiliza 13 jornalistas assassinados apenas entre janeiro e julho de 2025, superando todo o ano anterior. São vidas interrompidas não por erro, mas por coragem.
E enquanto os que resistem caem, cresce uma geração de cronistas do efêmero — analistas de manchete, repórteres de algoritmo, comentadores de si mesmos. O jornalismo que nasce da pressa morre de anemia ética.
Sem responder às perguntas essenciais — o que, quem, quando, onde, como e por quê —, a notícia se desmancha, o leitor se perde, e o poder agradece.
Leão XV disse ainda: “Não precisamos de uma comunicação ruidosa e violenta, mas de uma que saiba escutar e dar voz aos que não têm voz.” Mas escutar, hoje, é o gesto mais revolucionário que existe. Num mundo que só fala, quem escuta é subversivo.
A perda de profundidade não corrói apenas o ofício. Corrói a confiança pública, o sentido de pertencimento, o fio invisível que liga o cidadão à realidade.
Quando o repórter abdica de apurar, o leitor abdica de pensar — e a mentira, vestida de narrativa, assume o comando da história.
As palavras que me levaram a essas reflexões foram ditas em homilia pronunciada por Leão XV no Vaticano, em 12 de maio de 2025, um dos discursos mais lúcidos e ignorados do ano. A cobertura incessante das guerras nos campos de batalha e das guerras nos campos do comércio internacional abafou o eco moral desse pronunciamento histórico, que deveria ter ganhado manchetes, análises e reflexão global.
Soterrado sob estatísticas de destruição, câmbio e commodities, o discurso se perdeu — e com ele, perdeu-se também a chance de repensar o jornalismo como consciência coletiva, não como ruído de ocasião.
O Papa concluiu: “Jamais vendam sua autoridade.”
E talvez nenhuma frase resuma melhor a urgência deste tempo.
Porque, quando a imprensa troca sua integridade por visibilidade, deixa de ser bússola noturna e vira holofote — ilumina o cenário, mas não o caminho.
Entre a bala e a palavra, o verdadeiro jornalista escolhe a palavra.Não por heroísmo, mas por convicção. E é dessa convicção — ferida, teimosa e luminosa — que depende a última chama de lucidez que ainda resiste no mundo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




