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Plínio Zúnica

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Nas entrelinhas do discurso contra o discurso de ódio

Quando se fala sobre discurso de ódio, é importante ter em mente que a disseminação de ideologias racistas, xenófobas e extremistas é tão eficiente não apenas por causa de suas manifestações evidentes e caricatas, mas, antes, graças às suas formas mais sutis de manipulação do consenso

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Quando se fala sobre discurso de ódio, é importante ter em mente que a disseminação de ideologias racistas, xenófobas e extremistas é tão eficiente não apenas por causa de suas manifestações evidentes e caricatas, mas, antes, graças às suas formas mais sutis de manipulação do consenso. As bases do preconceito são fundadas pelos discursos aparentemente neutros e racionais, aqueles com que nos sentimos seguros, como o racismo da versão da História que consta nos nossos livros escolares, a homofobia “amaciada” em formato de piada nos programas de televisão, ou os julgamentos de valor no jornalismo, entre outros discursos com ares de oficialidade, considerados seguros pela maior parte da população. São esses discursos que preparam o solo de nosso imaginário social para a fertilização dos discursos de ódio mais evidentes, caricatos e perigosos. É essa retórica sutil que permite que colonização e xenofobia tenham se chamado de “fardo do homem branco”, ou que tortura e genocídio chamem a si mesmas de “segurança”. É uma fórmula simples e aceitável para a sensibilidade do cidadão de bem.

Discursos políticos de extremismo evidente tomam forma através de grupos organizados, como a Klu Klux Klan e o Estado Islâmico, ou de políticos agindo legalmente dentro do sistema democrático, como Feliciano e Donald Trump, ou de profetas do apocalipse, como Olavo de Carvalho, mas a sua existência só é possível graças à esse primeiro sistema de legitimação dos diversos tipos de discurso de ódio. Sutil, sorrateiro, escondido nas entrelinhas dos comerciais, noticiários, novelas, desenhos animados e documentos oficiais, é esse sistema que alimenta a irracionalidade extremista, via de regra ultra-nacionalista, paranoica, assustada e alienada. Pois bem, Tendo consciência do perigo do direcionamento ideológico da mídia, a UNAOC (Aliança de Civilizações das Nações Unidas), órgão da ONU, promoveu, no dia 2 de dezembro, o primeiro de uma série de simpósios que encabeçam uma nova campanha global que visa combater o discurso de ódio na mídia. A ideia é agir em duas frentes: 1) o processo intelectual de debate para definir o que é o discurso de ódio, investigar quais são suas origens e como combatê-lo, visto que as linhas que separam a liberdade de expressão do discurso de ódio são, por vezes, um pouco dúbias;  

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2) uma intensa campanha visando adequar os veículos de mídia e conscientizar os cidadãos do mundo a respeito do assunto. Nas palavras de Nassir Abdulaziz Al-Nasser, Alto Representante das Nações Unidas na UNAOC, “a mídia é um fator majoritário no modo como moldamos as nossas percepções e pontos de vista, e, portanto, é fundamental vencer a batalha das ideias.” Eu não poderia estar mais de acordo.

A importância desse tipo de campanha internacional e debate político é que, através de suas entidades e representantes, concede caráter de oficialidade e legitimidade para conceitos e definições sobre ideias antes consideradas difusas. Ou seja, o carimbo da ONU legitima  oficialmente uma visão sobre o que é, de onde vêm, como se propaga, qual é o efeito e de quem é a culpa do discurso de ódio. À primeira vista parece uma ideia bacana, mas temos que pensar qual é a versão que a ONU gostaria que fosse legitimada. Para isso, vale a pena analisar as ideias expostas no principal discurso deste simpósio, a fala da subsecretária-geral da ONU para Comunicações e Informação Pública, Cristina Gallach, uma vez que os discursos diplomáticos são uma daquelas formas sutis de disseminação e sedimentação de ideias não tão bem intencionadas.

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A Sra Galach, representando os interesses das Nações Unidas, inaugura a conferência dizendo:


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“É uma honra para mim participar desta tão importante iniciativa em uma época em que o discurso de ódio  tem incitado tanta violência ao redor do mundo, com consequências fatais.

O mundo testemunhou isso recentemente em Paris, onde ao menos 130 pessoas morreram nas mãos de nove jovens que atenderam ao chamado de violência do ISIS e sucumbiram ao discurso de ódio.

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O discurso de ódio está entre nós há muito tempo. Jamais nos esqueceremos do genocídio de mais de 800.000 Tutsis e Hutus moderados no breve período de três meses em Ruanda. Nós jamais nos esqueceremos dos seis milhões de judeus e cinco milhões de outros que morreram por causa de uma visão de ódio. Hoje, mais do que nunca, indivíduos estão usando discurso de ódio para fomentar o conflito de civilizações em nome da religião.”

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Os acusados
A primeira coisa a se notar são os agentes de ação do discurso de ódio que Galach considera bons exemplos: o ISIS, os Hutus ruandenses e os nazistas. A questão não é apenas se esses são ou não bons exemplos para o tema, mas sim pensar o porque de serem estes os casos nomeados.  É questão de prender a atenção. Um mágico medianamente habilidoso consegue fazer você escolher a carta que ele quer que você escolha em um baralho, e o truque consiste em demorar um segundo a mais nesta carta quando estiver passando todo o baralho na frente dos seus olhos. A manipulação de opiniões através do texto funciona da mesma maneira: você se demorar um segundo a mais em um assunto, der nome e forma ao que você quer que fique gravado como exemplo prioritário na mente das pessoas, esse será o primeiro nome de que se lembrarão as pessoas influenciadas pelo seu texto, e é assim, trincheira por trincheira, que se luta a batalha das ideias.

De fato, o ISIS atingiu um novo patamar no uso da mídia para difusão do discurso de ódio. A guerra ideológica é um pilar fundamental para o funcionamento desse grupo, e faz sentido que seja um ponto de destaque nas preocupações dessa campanha. No entanto, é sempre interessante, apesar de nada surpreendente, notar que a atenção da ONU é voltada apenas ao ataque de Paris. Solidariedade seletiva tem uma origem e função política. Quanto ao massacre de Ruanda, é um exemplo bastante curioso de ser usado, uma vez que ele não teve realmente nada a ver com mídia. O genocídio de Ruanda aconteceu em 1994, e durou o breve período de três meses, como disse a sra Galach, mas sua origem é muito anterior ao período que ela considera em sua fala. Qualquer pessoa que procurar no google vai descobrir que esse foi um conflito étnico entre as etnias Hutu e Tutsi. O que a maioria dos sites de pesquisa, documentários e notícias não vão dizer, assim como a Sra Galach não disse, é que o conflito étnico de Ruanda não existia até 1919, quando a Bélgica colonizou o país e criou o conflito, aplicando a politica de "dividir para conquistar", assim como também não diz que o genocídio ocorreu porque as Nações Unidas e as potências ocidentais deliberadamente negligenciaram o conflito. O não dito pela Sra Galach pode ser deduzido com um pouco de pesquisa, mas lendo-se e oficializando-se apenas o dito, o que temos é a legitimação da ideia de que foi um conflito causado pelo discurso de ódio entre hutus e tutsis. Logo, na ordem estabelecida pela Sra Galach,  além dos árabes, quem também sucumbe ao ódio desenfreado são os africanos.
Pra não dizer que não falei das flores brancas, a Sra Galach cita os nazistas como exemplo do discurso de ódio entre europeus, que resultou no genocídio de judeus e “outros”. Eu jamais contestaria o fato de que o nazismo é uma ideologia baseada no discurso de ódio, nem que o uso da mídia na batalha das ideias foi um de seus pilares, e muito menos que o holocausto judaico foi um crime hediondo contra a humanidade. O que é passível de questionamento é o uso do nazismo como o eterno, óbvio e único exemplo do que é o europeu malvado. O nazismo como referencial de mal absoluto serve para as potências dominantes como um álibi moral, uma vez que essas potências são, em tese, as antagonistas do nazismo, seja na figura dos Aliados, seja na figura dos arrependidos. É como se a xenofobia, o racismo, o colonialismo e os muitos genocídios de que se alimentaram e ainda alimentam as economias européias e norte-americana fossem apenas “um caso isolado” chamado nazismo. Os não-acusados Eu não sei qual é o critério da ONU para escolher quem são os melhores exemplos de discurso de ódio na mídia, mas tenho algumas sugestões. Nesta semana, Donald Trump, pré-candidato à presidência dos EUA, propôs a proibição da entrada de muçulmanos no país, além de já ter feito diversas outras propostas  que arrancariam aplausos entusiásticos de qualquer membro do Reich. Donald trump é um exemplo excelente do uso da mídia para disseminação do discurso de ódio, e os EUA são um exemplo perfeito dos efeitos claramente desastrosos da ideologia xenófoba, já que somente entre janeiro e novembro de 2015 ocorreram 351 "mass shootings" (o nome que americanos dão para atentados terroristas promovidos por brancos), nos quais morreram 447 pessoas. A ONU se pronunciou contra a proibição de imigrantes muçulmanos, mas não parecia muito preocupada com as propostas anteriores de deportação em massa de imigrantes, construção da muralha na fronteira com o México, vigilância governamental em mesquitas e legalização da tortura. Trump segue como candidato favorito dos norte-americanos, graças à sua campanha midiática de racismo, xenofobia e extremismo. O discurso de Donald Trump só é possível graças às formas mais sutis de disseminação do discurso de ódio, como foi dito no primeiro parágrafo deste texto, como os programas jornalisticos. Assim, talvez a Sra Galach devesse usar seu discurso para falar sobre as cadeias de jornalismo americanas, e seria coerente nomear Rupert Murdoch, comandante de uma das principais organizações de terrorismo ideológico do planeta, a Fox News. Em janeiro, Rupert declarou publicamente que todos os muçulmanos deveriam ser responsabilizados pelas mortes do atentado ao semanário Charlie Hebdo. A Fox News carrega inúmeras acusações de disseminação de discurso de ódio, e é uma das principais cadeias de mídia do planeta.

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Dar nome aos disseminadores do discurso de ódio quando são árabes, africanos ou evocando o Nazismo é fácil, e obedece a um propósito. Não nomear os disseminadores do racismo e xenofobia dos EUA e Europa, assim como não falar sobre a responsabilidade das potencias coloniais pelos problemas dos países de terceiro mundo, também é fácil, e também obedece a um propósito. É claro que isso não significa necessariamente que a campanha da ONU seja uma conspiração para manipular a percepção dos produtores de mídia e da população em geral sobre o que é o discurso de ódio e quem nós devemos culpar. Os trabalhos desses simpósios não podem ser resumidos somente ao discurso da principal representante oficial das Nações Unidas para o tema, ainda que isso não seja algo a ser desconsiderado. É importante estar atento para esse tipo de uso do discurso, principalmente considerando-se que esse é o tema da campanha, e que a ONU obedece a patrões que tem interesses diretos na exploração ideológica dos conflitos. E isso que não vou nem começar a falar sobre o problema do tal “conflito de civilizações em nome da religião”, que é assunto pra outro texto longo. A batalha das ideias é provavelmente o campo de disputa mais importante em termos de política, não só porque é por ela que se dominam os povos, mas porque é também através dela que pessoas se libertam. Por isso, cada vírgula, entrelinha, dito, meio dito e desdito importa. Leia sobre a campanha #SpreadNoHate da ONU aqui, os discursos de abertura da conferência aqui e a notícia curta em português aqui

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