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Flávio Barbosa

Cronista, psicanalista

28 artigos

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Nas quatro linhas

(Foto: Pixabay)
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Heleninho Fom-Fom era o que chamamos, sem meias-palavras, de o dono do time. Mais ou menos. Acima dele havia João Vila Nova, o presidente do Motoclube Futebol Clube de Santa Terezinha, no Sertão do Pajeú de Pernambuco, cidade vizinha da Paraíba.

O Motoclube era um clube simpático que foi fundado pelos motocas, a saber, vaqueiros da região que trocaram as cavalariças animal pelas cavalariças de aço e a despeito de uma certa antipatia que os mais tradicionais tinham dessa permuta, eles então fundaram um time de futebol para participar da Liga de Santa Teresinha e depois, um pouco mais robustos, da Liga Pajeuense de Futebol (LPF) e desse modo angariar simpatias perdidas e, claro, novos simpatizantes. De algum modo deu certo, mas talvez não seja bem assim, conforme contarmos um pouco das façanhas desse Clube.

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João Vila Nova era um coronel reformado da Polícia Militar de Pernambuco e por isso conhecido na cidade e no Pajeú como Coroné Vila, o que ele fazia questão de ser assim conhecido, e reconhecido. A patente lhe conferia uma autoridade, uma suposta austeridade, que ele sempre arriscava puxar mais um pouquinho no arfar de seu peito medalhudo e autoritário. Não era homem de muitas palavras, pois dizia que militar não é de dar recados e jogar palavras fora, mas dizer, isto sim, como as coisas tinham de ser. E no final arrematava sua frase favorita. Tenho dito! Sempre assim na voz imperativa.

O povo receoso desse Coroné casca grossa dizia, pro mode, não apoquentar muito o véio; já meio débil das cicatrizes do tempo e de uma constipação nos brônquios que não mais se curava. Contudo, com o mau-humor intacto, talvez ainda mais por isso mesmo, então o povo repetia que o que o Coroné dissesse, se escreve! Ou seja, um jeito de se dizer que o que ele dizia era lei. Não a lei. A Lei. Se é que vocês leitores (as) me entendem.

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Dessa constatação havia um misto de submissão voluntária e de gozação perene, pois o povo do Sertão do Pajeú com sua veia poética – cabe lembrar que Santa Terezinha é vizinha, pouco depois de quem vem do Recife, de São José do Egito, a cidade conhecida como sendo a dos poetas cantadores decassílabos e repentistas, fama essa espalhada por todos os rincões deste Nordeste --, portanto, um povo que arremetia das palavras sempre um cadinho de graça e pilhéria.

Já Heleninho Fom-Fom, todo-Todo, miava quando o Coroné Vila aparecia para dar a última palavra, afinal Heleninho era da mesma corporação do Coroné, mas de patente menor: tenente. E igualmente da reserva. Todavia, sem ter a Otoridade por perto, vixe Maria! Heleninho mandava em tudo. Fazia e desfazia com a mesma perspicácia e ousadia de quem se acha. Mormentemente, era um grandiosíssimo idiota, pra não dizer fio de..., e incorrer contra as senhoras aqui presentes. A sua glória, a medalha que carregava no peito, era a de ter garimpado pro clube uma joia rara, o centroavante Jajá.

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O centroavante Jajá, grosso de pai, mãe e parteira, chutava bola como chutava canela, aliás, como se diz por aqui, do pescoço pra baixo tudo era canela, ou pelota, para Jajá. Batia até na Santa mãezinha para fazer o gol e ganhar o jogo. Como se vê: não era lá um jogador muito limpo nas quatro linhas; nem dentro e nem fora dela como dizem as más línguas; também pudera, garimpado por Heleninho Fom-Fom e abençoado pelo Coroné Vila não podia dá coisa boa mesmo. Mas Jajá seguia seu périplo rumo ao gol e a artilharia, e nisso era uma lenda, e ao seu lado formava um ponteiro que com ele fez história (e pouco importa aqui a reputação desta), o Braguinha, um tipo líder do time em campo, que também era o treinador do escrete e, obviamente, sempre se escalava, e se dava, por certo, o bracelete de capitão da equipe.

O Coroné Vila acumulava a presidência do Motoclube Futebol Clube desde a sua fundação e da Liga de Santa Terezinha, já aí uma coisa estranha, mas, desse modo, se entende porque o time era hexacampeão nos últimos seis campeonatos da cidade organizados pela Liga. Ambicioso de um jeito tal que nem bola dava à saúde abalada, ele queria mais! Queria a presidência da prestigiosa Liga Pajeuense de Futebol, o que o tornaria o Senhor do Pajeú, e ainda mais próximo da Federação Pernambucana de Futebol (FPF), leia-se: do Poder. Afinal, quem chega à presidência da FPF só sai morto, e creiam: isso leva tempo. O Coroné Vila que já devia uns trocados à morte, acreditava, de pia convicção, que na presidência da Liga Pajeuense duraria mais um pouquinho, e ainda receberia uns trocados a mais que o pertencimento à poderosa Federação, e o poder de voto arregimentaria. Se isso não é uma verdade absoluta, ao menos era uma crença, e o Coroné Vila, saibam as senhoras e os senhores leitoras (es), era um homem devotado e místico.  

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As histórias corriam soltas na cidade e mesmo nos confins do Pajeú, afinal, jogar com o Motoclube Futebol Clube em seus domínios era um case. Quase um transe. Tudo conspirava para que o resultado fosse só um: a vitória do Moto. E quando o time ia visitar os adversários em seus domínios pode ter certeza que haveria grandes confusões à vista; tudo armado fora das quatro linhas pelo Coroné Vila, Heleninho Fom-Fom e o treinador Braguinha; já nas quatro linhas a incumbência da errância era do centroavante Jajá e o ponteiro, e treinador, Braguinha. Era pule de dez! Jogasse fora, haveria brigas, algazarras que os motocas, e suas motocas alopradas arrumavam, e quanto mais forte o adversário, maior seria a algazarra. O lema do time era “Perder Nunca, Recuar Jamais!” Fosse qual fosse o artifício do que isso significasse ao intento.

Em seus domínios, então, a coisa era surreal. Dizem que o Coroné Vila e o Heleninho refaziam desde o tamanho do campo (na largura e no comprimento) até o desenho da cancha, podendo, a depender do adversário, a topologia da cancha variar de um quadrilátero para um losango; de um polígono para um triângulo; de um retângulo para uma esfera, e tudo isso para confundir os adversários. Gente, vocês não imaginam o que esse pessoal era capaz de fazer. A coisa era tão esquisita, e estrambólica, que da passagem de um tempo ao outro dos noventa minutos a configuração do terreno poderia ser perfeitamente alterada na mais incrível assimetria, de modo que para onde o Motoclube atacasse a área do adversário ficaria a um palmo da linha do meio-campo. Ou seja, bateu o centro, cruzou a linha do meio, deu mais um passo à frente, se jogava no chão e era pênalti. Não tinha erro!

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Número de jogadores do Motoclube em campo, ah, isso precisaria de uma calculadora para conferir, pois poderia ter quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, já se contou vinte e dois, pois até o banco de reservas foi escalado para entrar em campo no decorrer da partida e ao mesmo tempo dos onze titulares. Agora, fosse o adversário reclamar das esquisitices e o destino seria o encontro com o ferro, ou seja, os canos dos 38 e 45.

Evidentemente como militares prevenidos, o Coroné Vila e o Heleninho Fom-Fom, o organizador da logística dos jogos, tinham sua tropa de choque, via de regra, colegas da farda e da reforma para acoitar os ditos cujos e a equipe por donde fossem. Tudo gente impoluta e cristã, mas sem se desaperceber das pistolas na cintura, pois a fé que removia montanhas também afastava pra longe os adversários em via das dúvidas.

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No campo de jogo Jajá e Braguinha detonavam os adversários. Descendente distante de italianos, paulista arribado para o Sertão sabe-se lá porquê, Jajá era um pantomímico incorrigível, descendo as mãos por todos os lados, inclusive no fiofó dos alemãos, e na pelota, mas quem se arriscava a marcar alguma coisa? Os árbitros de seus jogos eram como juízes do TSE, uma abstração, quase uma esfinge. Ninguém os via. Apenas os ouviam o sibilar, a favor do Motoclube, e no final do jogo, quando o Motoclube fazia o gol da vitória, e pouco importa que um jogo começado às quatro da tarde se encerrasse próximo da meia-noite, ou a depender do resultado, às 16h05.

Quando indagado pelos repórteres e comentaristas da Difusora e outras Rádios do Pajeú a despeito dessas curiosidades do tempo de jogo, o Coroné Vila filosofava com uma paráfrase de Santo Agostinho: “O tempo não há!” Sinceramente, alguém ousaria, em seus domínios, digo o do Coroné, refutar a criatura?

Mas o mais sincero disso tudo é que para esse pessoal tinha uma coisa que seria imutável, diria sagrado, quer seja: o jogo se joga nas quatro linhas.

Tem-se dito!

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