Negacionismo de esquerda: quando a correlação de forças se torna a 'Terra plana' do radicalismo
A correlação de forças para a esquerda é o que a ciência é para a extrema-direita: um incômodo que desafia crenças e expõe limites
O medo da realidade - Você não gosta da expressão “correlação de forças”, né? Pois é, a correlação de forças para setores da esquerda é o equivalente à ciência para a extrema-direita: um incômodo que desafia suas crenças e expõe suas limitações. Assim como as evidências científicas deixam claro que a Terra não é plana, a correlação de forças demonstra que a política não é um desejo infantil. Ela impõe limites, define possibilidades e exige estratégia. Mas para alguns, admitir isso significa aceitar que suas vontades não são suficientes para mudar o mundo—e isso dói. O problema é que, ao negar a correlação de forças, parte da esquerda recorre ao que deveria combater: o negacionismo. A extrema-direita rejeita a ciência porque ela impõe fatos inconvenientes à sua ideologia; setores da esquerda rejeitam a correlação de forças porque ela impõe uma realidade dura: sem organização, sem estratégia e sem articulação institucional, a transformação não acontece.
Há um grupo que prefere acreditar que basta gritar mais alto para que a história mude de rumo. Um grupo que acha que fazer oposição ao governo progressista – mesmo quando ele representa o único freio à extrema-direita – é um ato revolucionário. Mas será que esse radicalismo performático constrói alguma coisa? Ou será que apenas enfraquece a luta e abre caminho para a reação conservadora? A verdade é simples: negar a correlação de forças não torna a revolução mais próxima – apenas torna a derrota mais certa.
O materialismo histórico de Lenin e a realidade que desagrada - Lenin nos ensinou algo fundamental: revoluções não são feitas com base em vontade, mas em condições concretas. A transformação radical da sociedade não acontece por desejo moral, mas pela análise das forças em disputa, da organização da classe trabalhadora e da estratégia para avançar. O problema é que muitos que se dizem "leninistas" hoje têm pavor da lição central de Lenin: a revolução é um processo, não um surto de indignação. E o que determina esse processo? A correlação de forças. Lenin mostrou que a revolução só ocorre quando há um equilíbrio preciso entre condições objetivas (a crise do sistema, o desgaste das instituições, a falência da hegemonia da classe dominante) e condições subjetivas (o nível de consciência de classe, a organização política dos trabalhadores, a existência de uma vanguarda capaz de liderar a transformação). Negar qualquer um desses fatores é negar o materialismo histórico – e cair no mundo das abstrações idealistas.
Mas parte da esquerda contemporânea escolheu viver nessa abstração. Eles rejeitam a necessidade de articulação, demonizam qualquer negociação e chamam de traição qualquer movimento estratégico. No fundo, têm medo da realidade. Preferem acreditar que a revolução pode ser convocada por postagens indignadas no YouTube, X ou Instagram, como se a história fosse escrita por likes e não por força política organizada. Sem articulação e estratégia, não há mudança real. E nos dias de hoje, com desestabilização global, controle da informação e guerra híbrida, entender a correlação de forças não é só essencial para avançar na luta – é uma questão de sobrevivência.
O delírio da "oposição pela oposição” - A oposição sistemática ao governo progressista, feita por certos setores da esquerda, nada mais é do que um negacionismo político travestido de radicalismo. São aqueles que confundem estratégia com traição, tática com capitulação, e que, no fundo, acreditam que bater no governo é um fim em si mesmo, não importando as consequências. O raciocínio deles segue a mesma lógica do negacionismo da extrema-direita: “se a realidade não condiz com minha visão de mundo, pior para a realidade”. Assim como negacionistas do clima rejeitam evidências científicas porque ameaçam seus interesses econômicos, esses setores negam a correlação de forças porque ela ameaça suas certezas ideológicas. No fim, ambos compartilham o mesmo desprezo pelos fatos.
Vamos deixar claro: um governo progressista nunca será perfeito, ainda mais em um país como o Brasil, onde a estrutura de poder está historicamente capturada pelas elites. Mas há uma diferença brutal entre fazer crítica construtiva e fazer oposição sistemática como se estivéssemos lidando com inimigos idênticos. Esse tipo de oposição cega leva a dois resultados: enfraquece as forças progressistas e fortalece a extrema-direita. O pior é que, para esse tipo de militante, qualquer avanço obtido pelo governo é visto como uma ameaça ao seu discurso. Se o governo resiste, se mantém algum nível de soberania e evita retrocessos brutais, eles minimizam. Se o governo cede para não perder tudo, gritam "traição". É um jogo que só favorece a direita, porque desmobiliza, desmoraliza e impede qualquer avanço real. A política não é um palco de moralismo abstrato. Ou você joga o jogo para vencer, ou será atropelado. O problema é que, para alguns, perder parece ser uma escolha confortável – porque os livra do peso da responsabilidade.
Os dois caminhos possíveis - Diante da realidade concreta, sem ilusões e sem negacionismo, restam apenas duas opções possíveis para a esquerda neste momento. A primeira é tensionar as relações institucionais entre as forças progressistas e as elites, sem perder o controle do jogo. Isso significa disputar espaços, avançar onde for possível, impedir retrocessos e criar condições para mudanças estruturais. Exige paciência, estratégia e capacidade de articular sem se render. A segunda opção é focar na luta essencial e visceral: impedir, de toda forma, que a extrema-direita volte ao poder pelo voto popular. Isso não é detalhe, não é secundário, não é uma “tarefa menor”. Se a extrema-direita reassumir o controle do Estado, não haverá espaço para debate, muito menos para construção revolucionária. Haverá repressão, perseguição e a institucionalização da barbárie.
Negar essa encruzilhada e agir como se o governo progressista fosse apenas “o outro lado da mesma moeda” não é apenas burrice – é irresponsabilidade histórica. Esse erro já custou caro no Brasil e no mundo, sempre com o mesmo desfecho: o avanço do fascismo. A política tem regras próprias. Se a esquerda não entende isso, a extrema-direita entende muito bem. Eles sabem como utilizar as ferramentas institucionais, como construir hegemonia cultural e como manipular o descontentamento popular. A diferença é que, enquanto a extrema-direita faz isso para destruir a democracia, alguns setores da esquerda fazem para se sentirem “coerentes”. Mas coerência sem estratégia é só um suicídio político glorificado.
A esquerda precisa parar de ter medo da correlação de forças - A realidade é dura, mas ignorá-la não faz com que ela desapareça. A correlação de forças não é um capricho reformista, nem um obstáculo para mudanças estruturais – é o próprio campo de batalha onde a luta política acontece. Negá-la é agir como a extrema-direita age diante da ciência: fechar os olhos para os fatos porque eles não confirmam suas vontades. Mas política não é um exercício de desejo, e revoluções não acontecem por indignação moral.
Por mais que existam muitas críticas legítimas ao governo Lula, o mínimo que se espera da esquerda e dos setores “democratas” da política é que deem o sangue para derrotar a extrema-direita nas urnas. Uma derrota eleitoral já seria trágica no campo político, mas no campo simbólico, seria catastrófica. Essa gente é extremamente articulada, tem muito dinheiro e subestimar sua inteligência e capacidade estratégica é um erro grave. Eles não estão brincando. Eles aprendem com os erros, ajustam suas táticas e voltam mais fortes. Se a esquerda não fizer o mesmo, o resultado será inevitável: retrocesso, repressão e destruição. A escolha, no fim das contas, é simples. Ou compreendemos a realidade como ela é, analisamos a correlação de forças e agimos com inteligência, ou seguimos fingindo que podemos impor nossa vontade à história, até sermos esmagados por ela. Se a esquerda quer vencer, precisa primeiro parar de ter medo da realidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

