Neguinho da Beija-Flor e a banalização do termo pragmatismo
A pauta de hoje pede Benedita da Silva como candidata única da esquerda para o Senado: mulher, negra e favelada, conectada há décadas com a política real
Pragmatismo é a palavra da moda na política e, em especial, no PT do Rio de Janeiro. Sacada a todo momento como uma Excalibur retirada da pedra, transforma qualquer idiota da vila em “gênio da política” no segundo seguinte em que o termo é usado. Assim, segundo os novos gênios da geopolítica da internet, o PT ganhou 5 eleições por pragmatismo, conseguiu recuperar um país quebrado pelo pragmatismo, se tornou uma máquina eleitoral por pragmatismo, que não tem nenhum efeito reverso, não tem contraindicações e, no meio deste tortuoso caminho, não houve um golpe, não foi gestado o bolsonarismo, a extrema direita não se fortaleceu, não temos 4/5 de um Congresso reacionário e não construímos uma maioria conservadora no STF, mesmo tendo indicado a maioria dos ministros da Corte.
É muito fácil fazer uma análise triunfalista, esquecendo de todos os inconvenientes e tropeços e citando apenas aquilo que confirma nossas convicções. Assim, Dilma caiu porque não foi pragmática o suficiente, não por uma conjuntura complexa em que enfrentamos uma pesada crise econômico-financeira com uma minoria absoluta no Congresso e no STF. E é bom lembrar dois aspectos do golpe contra Dilma, que os defensores do tal “pragmatismo” de quinta categoria fazem força para esquecer:
- O ministro da Fazenda nomeado foi Joaquim Levy, que estabeleceu, logo de início, medidas neoliberais e contraditórias com o programa que havia acabado de derrotar Aécio Neves, confundindo inclusive nossa base de apoio popular, inclusive com uma famigerada reforma da Previdência que retirou direitos dos mais pobres. Óbvio que o remédio amargo para curar a doença acabou matando o pobre doente, solapando o resto de apoio popular que tínhamos na época. Ou seja, o pragmatismo não foi a cura, foi o câncer que nos corroeu por dentro.
- As indicações estapafúrdias para o STF, que deram maioria aos golpistas para dar musculatura à Lava Jato, planejar o golpe, executar com sucesso o impeachment, impedir que Lula tomasse posse como ministro e, por fim, decretar a prisão de Lula.
Bem, rememorando direitinho dois fatores muito determinantes para o golpe, não parece que o tal pragmatismo de quinta, que prefiro chamar de oportunismo, tenha dado muito certo, não.
A lição, além de não ter sido aprendida, parece ter sido esquecida por parte do próprio PT. Não vencemos Bolsonaro na última eleição “aplicando pragmatismo”; vencemos com uma aliança ampla, sim, mas cujo programa era bem claro: “frente ampla contra o fascismo”. Não é um programa revolucionário e socialista, mas é um claro programa popular, que combate a misoginia, a homofobia, a entrega dos bens públicos, o mais aberto neoliberalismo executado pelos fascistas e retoma as políticas públicas. Não se deve confundir o programa, claro, límpido como o sol, com a aliança executada para que conseguíssemos derrotar Bolsonaro. Se assim o fizermos, saímos de executores deste programa para meros espectadores de uma aliança.
Hannah Arendt ensinava que o fascismo é a morte da política. O caminho que levou a Alemanha e a Itália ao nazi-fascismo foi a criminalização da política, a transformação da mediação política num espaço travado em que o ser político passa a ser um ser sujo e criminoso. A ideia da política, dos sujeitos coletivos e entes políticos como espaços de usurpação do bem comum e não de disputa de ideias. Assim, partidos políticos, sindicatos, associações, organizações do movimento social têm que ser pintados como espaços em que as pessoas estão para resolver questões pessoais e a própria vida, e não como espaço de disputas de corações e mentes. Sindicalistas e ativistas como ladrões e gente que trabalha contra uma “ordem” natural das coisas, que levaria tudo a funcionar automaticamente. “Limpando” o espaço público do inconveniente da política, as coisas funcionariam normalmente.
Assim, o fascismo traveste-se da ideia da recuperação desta ordem (que de fato não existe) e de defensores de valores que valem de uma vez para sempre. E é por isso que só pode funcionar de maneira agressiva, trancando qualquer espaço de discussão e mediação, porque não é da ordem da razão ou da disputa de ideias, mas da interdição destas mesmas ideias.
A marginalização da política e a criminalização do PT foram o espaço mofado e fétido no qual a putrefação do fascismo floresceu feito cogumelo depois da chuva. A campanha da grande mídia contra o PT, com a luxuosa contribuição de parte da extrema esquerda, foi o combustível do Mensalão, da Lava Jato, do impeachment, da prisão de Lula e da tentativa de golpe final em 8 de janeiro de 2023.
A eleição de 2022 nos deu a possibilidade de recuperar fôlego e ganhar espaço na disputa de corações e mentes. A imagem do PT e da esquerda foi recuperada como defensores da democracia e das políticas públicas, dos direitos das mulheres, negros, LGBTQIs, minorias e dos direitos humanos. Não ganhamos a eleição somente através de uma ampla aliança “pragmática” (terrível palavra deslocada de novo), mas porque recuperamos a iniciativa na disputa de programa na sociedade brasileira.
E não tivemos uma retumbante vitória; corremos o risco de haver sido uma vitória de Pirro, conseguindo apenas 1/5 do Congresso, levando à frente um governo sitiado e carcomido por dentro, com aliados circunstanciais. Na verdade, em 25 de junho de 2025, quando um Congresso de “aliados pragmáticos” derrubou o IOF do governo Lula, deixando o Brasil em crise de insolvência financeira por não ter condições de honrar os compromissos do governo sem um tremendo corte no social, ficamos muito perto de chegar a uma derrota absoluta, espécie de último baile da Ilha Fiscal, com o governo administrando danos até a eleição.
Na verdade, não foi o “pragmatismo” que nos salvou. Nossos “aliados pragmáticos” continuam nos traindo, dia sim, dia não. Esta aliança pragmática parece mais uma música de Lupicínio de marido traído, que sabe que é corno, mas continua a relação colocando a culpa no sofá e cantando solerte a traição.
Nossa saída à crise não foi mais “pragmatismo”, foi conseguirmos a reversão da perda do IOF no STF, no qual aprendemos a lição e não conduzimos outros inimigos nossos à mais alta Corte do país, aliado a uma grande campanha midiática focada na luta de classes, numa definição bem clara de campos, entre nós e eles.
Nós, os fodidos, os trabalhadores, os tributados, os que carregam o país nas costas; e eles, os bilionários, os especuladores, os bancos, as fintechs, as bets.
Vejam, não foi “mais pragmatismo” que reverteu o jogo, que tirou o governo das cordas e deu protagonismo a ele. Foi um programa definido, uma tática clara, com objetivos populares, que fez com que a popularidade de Lula crescesse imediatamente junto não só às camadas populares, mas junto à classe média. Aliado a isso, medidas todas progressistas: isenção de taxas na cesta básica, isenção do IR até 5 mil, taxação dos bilionários etc.
Insistindo e sendo chato: há pragmatismo zero nisto. Isto é tudo luta de classes, na prática. O que colocou nas cordas a ultradireita e até parte da ultraesquerda, que sofre de esquizofrenia, nas cordas.
Somado a isso tudo, a total falta de inteligência dos bolsonaristas. Eduardo Bolsonaro nos EUA pedindo a taxação dos produtos brasileiros, pauta de anistia, tentativa de criação de ditadura militar (anistia não, impunidade; devemos dar nomes corretos ao que eles pedem), aumento do número de deputados, tentativa de tornar os deputados inimputáveis, dando a estes a prerrogativa de matar, roubar, estuprar e só serem investigados sob autorização da Câmara. Em resumo, uma série muito grande de trapalhadas levantou a bola para o governo Lula atacar sozinho na rede e marcar seus pontos.
De novo, mais uma vez, insisto: onde está o tal do pragmatismo na nossa virada? Não foram abraços em Pazuello, fotos com Brazão ou carícias no campo reacionário que nos colocaram de volta no jogo político. A iniciativa é nossa; quem está apanhando, no canto do corner, são eles.
Aí, de maneira tosca, burra e sem sentido, reaparece um discurso oportunista pseudo-pragmático dizendo que precisamos de mais “pragmatismo” para vencer em 2026.
De verdade, o que precisamos é surfar na onda da recuperação das nossas bandeiras, aproveitar a demissão de 400 bolsonaristas infiltrados no nosso governo e partir para eleger um Congresso que, caso não dê maioria ao próximo governo Lula, dê ao presidente condições melhores de governar sem ficar o tempo inteiro tendo que barganhar cargos e verbas para a direita.
Para isso, é necessário priorizar nossos nomes e candidaturas, do PT e do campo de esquerda em todo o Brasil. Dobrar o nosso número de parlamentares, das legendas mais fiéis e programáticas, para que não precisemos o tempo inteiro negociar com a bancada da bala, da Bíblia e do agro. Esta lição parece já ter sido aprendida no STF, local em que, ao que parece, não indicaremos mais ministros do Centrão, que nos trairão no dia seguinte ao de sentar na cadeira do STF.
A mesma lição tem que ser reaprendida e retomada para as eleições no Congresso. Óbvio que haverá alianças, mas temos que ter o maior número de candidatos e candidatas próprios(as) possíveis em todos os estados, para não ficarmos o tempo inteiro reféns da chantagem do Centrão.
Para isso, também temos que tomar extremo cuidado com o entrismo. Não adianta correr para filiar pessoas sem nenhum perfil de luta política para “ganharmos” um cargo ou eleição, correndo o risco de, na semana seguinte, nos momentos mais duros da luta, vermos esta migrar para outro partido e votar contra nossas pautas.
Fico não só indignado, mas é de cair o cu da bunda o açodamento de setores do PT do Rio, que pensam que o PT é uma empresa que tem que ser gerida verticalmente e sem discussão política, impondo sua vontade através de uma maioria que pode ser numérica pelo número de garrafinhas disponíveis para votar sua vontade, mas que está longe de ser representativa politicamente, para emplacar exatamente a política que Lula está derrotando ao enfrentar as pautas da extrema direita.
Neguinho da Beija-Flor pode ser um cara muito simpático, talvez até seja o maior intérprete de sambas-enredo de todos os tempos – o que não é sequer algo unânime, já que, para muitos, foi Jamelão o maior intérprete de samba de todos os tempos, e já tivemos até Clara Nunes interpretando samba-enredo da Portela –, mas está longe de qualquer trajetória no campo popular e democrático, em detrimento do nome unânime dos setores realmente ligados às lutas sociais no PT, que é o de Benedita da Silva.
A morte do debate político leva ao fascismo; em geral, quem derrota a política é a ultradireita. Mas o oportunismo, dourado de “pragmatismo” (seguramente Peirce e Henry James não reconheceriam a filosofia deles nestas cagadas), também ajuda a sepultar a discussão política. Filiar um militante do PL de Jair Bolsonaro (que pessoalmente já foi alguém próximo de Lula, mas encerrou esta proximidade cantando um samba de louvor à Lava Jato), com laços estreitos com a família Abrãao David – que foi a família que deu todo apoio e estruturou os candidatos da ARENA na Baixada Fluminense e que até hoje é espaço privilegiado de apoio à reação – para candidatar-se ao Senado porque ele seria pretensamente “popular” é matar e sepultar a política. Seria Delcídio do Amaral 2, o retorno. A primeira vez com Delcídio foi a tragédia; a história parece querer se repetir como farsa.
Não há paradigma de comparação entre os dois, entre Neguinho e Bené. Bené tem uma vida de dedicação à luta social e popular. Neguinho é, no máximo, um sujeito com quem se pode bater um bom papo. Pode ser que, por uma maioria de garrafinhas, ao fim e ao cabo, ele seja emplacado goela abaixo para a real militância do PT do Rio de Janeiro. Seria, mais uma vez, uma derrota da política e o apoio a exatamente tudo aquilo que nos fez ser corroídos por dentro, que deu combustível ao golpe e ao impeachment.
É um desserviço à luta do PT para recuperar espaço na discussão de projeto dentro do país e na luta por corações e mentes. Oportunismo puro e simples vendido como “visão pragmática da política”.
Não foi este oportunismo de quinta que colocou quase 200 mil pessoas em Copacabana pela democracia, contra a anistia, contra a impunidade dos parlamentares e a favor das pautas populares.
A pauta de hoje pede Benedita da Silva como candidata única da esquerda para o Senado: mulher, negra e favelada, conectada há décadas com a política real dos movimentos sociais, não um candidato inventado que é, ao fim e ao cabo, de novo, o assassinato da política.
Recuperemos nossas bandeiras, desfraldemo-nas com orgulho. Para isso, precisamos ter compromisso com quem tem compromisso histórico com nossas pautas!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

