Urariano Mota avatar

Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

503 artigos

HOME > blog

Nelson Machado, grande homem público

Agora, o sistema se esclarece e faz sentido. Aqui também há um planejamento de flores que talvez ele não colha

Encontro em Recife (Foto: Reprodução)

Nesta semana, li na imprensa as mais recentes notícias sobre Nelson Machado, ex-ministro da Previdência Social:

“Após a aprovação da reforma tributária, o CCiF (Centro de Cidadania Fiscal) prepara agora uma proposta para reformular o Orçamento público.... A escolha foi não discutir no projeto o dimensionamento do gasto obrigatório, como as transferências sociais, aposentadoria rural, seguro-defeso, abono salarial. "É relevante, precisa ser discutido, mas tem um componente de escolha efetivamente política, [se] eu quero mais saúde, menos educação, mais abono, menos Bolsa Família...", afirma Nelson Machado.

Grupo criado por Appy vai propor reforma do Orçamento - 02/11/2025 - Mercado - Folha .

Depois de me referir à notícia na minha página do Face, passei mensagem para sua esposa Rona, que me respondeu:

“Boa tarde, Urariano, quanto tempo!

Obrigada por essa divulgação do trabalho do CECiF. Vou encaminhar sua mensagem pra ele. Acabou de sair para ir a Brasília comemorar junto com Bernard Appy, o fechamento da Secretaria Especial que o Haddad criou para fazer a Reforma Tributária. Missão cumprida!”.

Então, esta é a melhor hora de recuperar um texto sobre Nelson Machado que publiquei no La Insignia, em novembro de 2006, quando ele era ministro da Previdência Social. Vamos à praia no texto:

Um ministro em Pernambuco

Esta semana eu estava em casa, quando tocou o telefone na sala do computador, onde trabalho. Já atendi mal-humorado, porque esse telefone só toca para oferta de cartão de financeira. Atendi pronto a dizer que odeio banco.

Então uma voz feminina pergunta:

- É o senhor Urariano Mota? - Sim, está falando com ele. - Aqui é do Ministério da Previdência Social.

E eu desconfiado, de uma cilada, de uma burla, ou de algum problema com minha aposentadoria. Teria um acaso descoberto que eu deixara de ser eu? E continua a voz:

- Um momento que o senhor Ministro deseja lhe falar... (Pensei, "realmente, isto é brincadeira, vai começar a zombaria".)

Mesma voz feminina, mas com ar de dúvida, e com absurda e indevida interferência:

- O senhor conhece o Ministro? - Sim, eu o conheço. - Um momento, que vou passar pro celular dele... (E eu a pensar comigo, agora é o puro golpe, estou preparado, que venha.)

Voz masculina, depois de uns segundos:

- Aqui é Nelson Machado. Como está Vossa Excelência?

Era o próprio, reconheci, até pelo sotaque paulista. E eu:

- Vossa Excelência é o senhor... a que devo a honra do seu telefonema? - Estou aqui no Recife, eu e Rona, e queria ver se a gente podia se encontrar... Hoje estou com a agenda cheia, mas amanhã estou livre, para a hora que você quiser e puder.

Então acertamos um encontro. Então a brincadeira não era brincadeira, era real. O Ministro da Previdência Social, senhor Nelson Machado, ligava para a casa de um indivíduo sem projeção, sem riqueza e sem poder, depois de 28 anos. Em um texto anterior, destacávamos o caráter desse ministro. Mas "agora", na hora em que desligo o telefone, comento aqui em casa: uma atenção assim dá bem a medida dos homens públicos do governo Lula. Estamos de fato em um novo tempo. E para nada dizer do jantar a que fui, na noite desse mesmo dia, onde um grupo de professores da UFPE o convidou para um chope, em que eu bebi tão pouco, comi tão pouco peixe, preocupado com a grande conta da noite, porque nada sabia que o jantar seria pago pela universidade, como retribuição a uma palestra do Ministro. Para nada dizer de um momento em que o ministro sai do centro da mesa, vem para a ponta esquerda, e conversa comigo em voz baixa, até o momento em que o aconselho, "Nelson, volte por favor para o seu lugar. Todos nos olham...". Para nada dizer desse primeiro reencontro, aonde fui com o meu máximo de elegância possível, a saber: camisa verde, calças jeans e sapatos, que calcei pela primeira vez em 5 anos, para não constranger uma autoridade, mas ainda assim descobrir que o meu verde bem me podia pôr entre os marcianos, porque todos estavam de terno, a caráter. Para nada dizer do que me perguntavam, aqui e ali, de passagem, mas ainda assim à espera de uma resposta:

- Como você conheceu o Ministro? O que você faz?

E eu respondia, sou escritor, e sentia para essa resposta um ar gélido de estranheza, até que eu acrescentasse: sou também jornalista, ah, e voltava ao reino dos homens. Para nada dizer, digo que neste fim de semana nos reencontramos pela segunda vez, rumo à praia de Porto de Galinhas.

Enquanto estávamos indo, no automóvel da nossa casa, com a minha mulher na direção, porque eu não gostaria de ser responsável por uma ausência trágica no Ministério de Lula, comento em voz alta, mas me dirigindo em especial a Rona, sua mulher, autora de livros de História:

- Rona, um amigo me disse, quando eu lhe comuniquei que viria me encontrar com vocês: "Há trinta anos tomávamos cachaça com dinheiro contado. Hoje você é comensal de um ministro de Estado. Imagine se vivêssemos numa democracia popular, com todas as forças da sociedade liberadas...". Você veja, nós ainda não temos uma democracia popular. Mas a sensação que eu tenho, Rona, agora, é que estamos vivendo a história. Sim, a gente sabe, todos os dias, todos nós, anônimos e famosos, grandes e pequenos, em todo lugar vivemos a história, mas disso não temos a mínima consciência. Os dias são como um inacabável cotidiano, sem sentido e sem rumo. Mas o que me ocorre agora é uma consciência forte e clara: nós estamos na história, Rona. Quando Nelson ascende, ascende com ele toda uma geração. Nós estamos no gozo da história. Ela agora é mais que uma certeza. Estamos vivendo a história. É uma coisa concreta.

No carro, ninguém me responde. Mas eu sei, e sinto o faro de que tal silêncio é emoção. E nem me viro para olhar os seus rostos. No banco de trás, onde o Ministro se abriga com a esposa Rona, eu nem preciso ver a denúncia deste momento em seus olhos. Nem preciso vê-los. E aqui merece um especial destaque a falta de pompa do Ministro da Previdência Social na pessoa de Nelson Machado.

O ministro não é o ministro. Ele se abriga, dorme em pousadas, viaja agora em nosso carro, um velho Fiat, disfarçado de turista, rumo a um destino que nós mesmos não sabemos onde. Temos um plano, queremos atingir Porto de Galinhas, mas Francesca ao volante erra diversas vezes o caminho. Giramos em torno do aeroporto do Recife, quem sabe, talvez quiséssemos voar, depois nos metemos em veredas de canaviais, estradas de barro, cheiro e fumaça de canas queimadas, brotos de cana pelo chão, e eu morro de medo, em silêncio, porque bem sei que os pneus não resistirão a uma furada de espeto de cana. Na verdade, uma parte de mim tem medo, e outra parte é uma íntima glória, porque a minha mulher e filhos, todos em conspiração, dizem que ela é melhor motorista que eu. Bueno, se ela é melhor, deveria responder-lhes, onde cairíamos, se eu estivesse no comando? Entre matas indevassáveis e suspensos por uma corda em uma palmeira?

O fato é o que o Ministro não se aflige. Não demonstra aflição, quero dizer. O ministro não é o Ministro. O ministro não é ministro. Ele é Nelson, Nelson Machado, um homem que por circunstâncias nem sempre escolhidas por ele está no Ministério da Previdência Social. E de fato, ao chegar à praia de Porto de Galinhas ele bem se disfarça. Toma banhos de protetor solar, de uma pasta branca, dos pés à raiz dos cabelos, que já brancos por natureza ficam grossos de substância sólida, untuosa. Assim posto, em frente a uma barraca onde acampamos, o ministro jamais será reconhecido como o ministro. Será outra coisa, algo como Nelson, o Machado, o homem das neves nos trópicos.

Esta ausência do Ministro na pessoa de Nelson Machado conduz a situações bem cômicas.

Na praia, uma dupla de violeiros, sob a provocação e pedido deste que vos fala, improvisa versos na viola sob o tema "O Ministério da Previdência". E o ministro, que não é o ministro, que está com seu corpo branco ao sol da praia, ouve e sorri diversas vezes, principalmente naqueles versos onde os repentistas mais são injustos. Porque os poetas falam de filas, longas filas nos postos da Previdência. Porque os poetas ironizam, falam que o Ministério vai muito bem, mas a saúde nos hospitais é que vai mal. E o ministro, que não é o ministro, sequer protesta, embora me diga depois, em voz baixa, para que ninguém o escute na praia:

- Isso está no imaginário popular. Posto do INSS pra eles é fila. E falam de hospital quando querem falar de Previdência Social. Há anos que uma coisa nada tem a ver com a outra.

O certo ainda é que neste capítulo dos violeiros que meteram o pau na Previdência, quem pagou a conta foi o provocador que vos fala. Os violeiros receberam uma pequena contribuição do ministro de aparência na praia, o de barbas. (Barba no Brasil, depois de Lula, ficou muito valorizada.)

Então eu lhe pergunto, em voz baixa, como ele encara o próprio trabalho no Ministério, como ele se vê nesse cargo. Ele me responde:

- Trabalho como eu faço com a minha própria vida. Planejo para toda a vida, como se fosse viver mais de duzentos anos, mas procuro agir rápido, como se fosse morrer hoje.

Na hora, isto me parece muito estranho, muito esquisito. Como é que devemos ter urgência para o que não iremos usufruir? A lógica manda que cuidemos primeiro do teto que ameaça as nossas cabeças, depois, bem, se houver depois, vamos cuidar de coisas futuras. Estranho. Isto nele é uma marca de caráter, o momento presente de Nelson Machado se encontra inscrito em um projeto mais longo. Até então nós compreendíamos o futuro como uma construção do presente. Mas ele vai mais longe, para ele o porvir vem sendo feito desde o passado. Para ele isto não é um conceito, é um sistema. Estranho. Agora em casa, enquanto escrevo, descubro uma relação entre este princípio e o que me contou a sua esposa Rona. Ela me disse que o Ministro, que não posa de ministro, cultiva plantas e flores do cerrado. Colhe-as quando saem aos fins de semana, com cuidados e urgência, para levá-las até o apartamento. Então, agora, o sistema se esclarece e faz sentido. Aqui também há um planejamento de flores que talvez ele não colha. Talvez um dia, quem sabe, ele ainda veja amadurecer essas plantinhas que apenas põem as folhas verdes. Agora, neste instante.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.