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Henrique Pizzolato

Ex-sindicalista bancário; ex-presidente da CUT Paraná; ex-diretor da Previ e do Banco do Brasil; militante de Direitos Humanos e membro da Rede Lawfare Nunca Mais

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Nero no palanque, Brasil com cabeça erguida

Entre a soberania reafirmada por Lula e o exibicionismo vazio de Trump, a relação Brasil–EUA volta a expor o choque entre dignidade e decadência imperial

O presidente dos EUA, Donald Trump, em discurso na ONU (Foto: Mike Segar/Reuters)

Trump hoje parecia a síntese de Nero e Calígula. Faltou compostura, sobrou autopromoção. Quando um ex-presidente da maior máquina militar do planeta usa o púlpito da ONU para falar de si, inflando o próprio umbigo, não está exercendo liderança. Está encenando decadência. E decadência de império costuma vir embrulhada em bravatas, ameaças veladas e um roteiro conhecido de pressão sobre países que insistem em ter projeto próprio. O Brasil já viu esse filme e não precisa de reprise.

A mensagem central para nós é simples. Ao Brasil cabe soberania, não tutela. Trump opera dentro de um manual que tenta transformar qualquer autonomia do Sul Global em insolência. Quando o Brasil fala em decisões próprias, em agenda de desenvolvimento que responda ao seu povo e às suas instituições, o velho reflexo imperial reage. Vem a chantagem retórica. Vem a instrumentalização de crises. Vem a tentativa de nos empurrar para disputas que não são nossas. Esse impulso de tutor não é acidente. É método.

Lula, ao contrário, levou um recado claro. O Brasil conversa com todos, mas não se ajoelha diante de ninguém. Relação madura com os Estados Unidos é diálogo entre iguais. Não se mede por selfies, cochichos de corredor ou afagos performáticos. Mede-se por respeito às instituições brasileiras, à nossa justiça e às nossas escolhas estratégicas. Quando Lula invoca democracia e Estado de Direito, também está delimitando fronteiras para quem tenta usar o aparelho diplomático ou midiático a fim de redesenhar a política doméstica brasileira. Houve tempo em que parte do establishment de Washington tratou o Brasil como peão num tabuleiro geopolítico. Esse tempo precisa terminar.

Trump encarna o inverso do que o Brasil precisa num parceiro. O discurso autocentrado não oferece cooperação. Oferece alinhamento automático. O subtexto é conhecido. Se o Brasil não seguir o script, virão pressões comerciais, narrativas de deslegitimação, interferências discretas. Já vimos engenharia de lawfare viajar pelo Atlântico embalada de combate à corrupção enquanto servia a rearranjos de poder. Já vimos a velha Doutrina Monroe ganhar maquiagem de boas práticas. Não aceitaremos que a história se repita com novos slogans.

O gesto final de Trump, uma bajulação a Lula, não foi cortesia. Foi truque. Quem precisa exibir deferência na última linha do teleprompter busca manchete fácil e confusão calculada. A lisonja tardia é a máscara do perdedor que procura capturar a narrativa do adversário para depois desmoralizá-lo. O alerta é necessário. Este filme também já passou. Houve elogios que se converteram em constrangimentos públicos. Houve convites que viraram plateia para humilhação, do Volodymyr Zelensky na Casa Branco a líderes africanos transformados em figurantes. Com Trump, flerte diplomático é isca. Responde-se com polidez, mas não com ingenuidade.

Qual deve ser a linha do Brasil? Primeiro, preservar a institucionalidade como ativo estratégico. Quem decide o rumo do país é o voto brasileiro. Segundo, blindar a política externa de vaivéns de personalidades norte-americanas. Relação com os EUA é de Estado para Estado. Oscilações domésticas em Washington não podem sequestrar nossas prioridades. Terceiro, consolidar convergências concretas onde elas existem e nos interessem, sem ceder em princípios. Cooperação em tecnologia, indústria, segurança pública e combate a ilícitos transnacionais é bem-vinda quando respeita a lei brasileira e a reciprocidade. Quarto, afirmar com firmeza que nenhum contencioso bilateral justificará interferência sobre o nosso sistema de justiça ou tentativas de moldar o jogo político interno por meio de pressões midiáticas, judiciais ou financeiras.

Trump joga para dividir. O Brasil precisa jogar para somar. Isso significa aproximar o que há de responsável e institucional nos EUA sem embarcar no espetáculo. Significa cultivar canais com Congresso, empresas, universidades e sociedade civil norte-americana, reduzindo a importância de caudilhos midiáticos. E significa avisar, de modo sereno, que a parceria se mede por resultados mensuráveis e respeito simétrico, não por frases de efeito em Nova York.

Há quem confunda altivez com afronta. É o contrário. Altivez é a condição para uma boa amizade entre países desiguais em poder. Quando diz que não aceitará medidas unilaterais que lesionem suas instituições e sua economia, o Brasil não está rompendo pontes. Está garantindo que as pontes não sejam passarelas de mão única. Quem respeita este limite encontra no Brasil um parceiro previsível, com visão de longo prazo, capaz de entregar estabilidade na relação. Quem não respeita, encontra um país que sabe dizer não.

Hoje, a ONU expôs dois estilos. Um estilo encenou a fúria de um império cansado, que exige deferência e oferece exibicionismo. O outro reafirmou que o Brasil busca cooperação com dignidade, sem subcontratar seu destino. O recado para Washington deveria ser ouvido para além da espuma. O Brasil não é satélite. É nação com projeto. É com esse Brasil que os Estados Unidos precisam aprender a conversar. Sem tutelas. Sem armadilhas. Sem Nero ditando o tom.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.