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Tiago Zaidan

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Nise da Silveira, rebeldia que gera ciência

Nise morava no próprio trabalho. Em seu quarto, uma enfermeira teria encontrado livros marxistas – considerada leitura subversiva. Denunciada, a psiquiatra foi detida no próprio hospital e conduzida ainda com a vestimenta de trabalho. O episódio de intolerância infelizmente encontra paralelo nos dias de hoje

Nise morava no próprio trabalho. Em seu quarto, uma enfermeira teria encontrado livros marxistas – considerada leitura subversiva. Denunciada, a psiquiatra foi detida no próprio hospital e conduzida ainda com a vestimenta de trabalho. O episódio de intolerância infelizmente encontra paralelo nos dias de hoje (Foto: Tiago Zaidan)
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Ao sair de Maceió rumo a Salvador, para cursar medicina, no início da década de 1920, uma jovem alagoana levou consigo uma frase do pai, professor de matemática: “Nunca aceite privilégios por ser mulher”[i]. O pai a amava, mas a frase demonstrou ser mais irônica do que feliz. Durante a vida, o fato de ser mulher em uma área então dominada por homens, exigiria da jovem um esforço dúplice. Em 1926, Nise da Silveira (1905-1999) se tornou a primeira médica alagoana. E este foi apenas o prelúdio do que estava por vir. Uma revolução na psiquiatria.

É possível que, justamente por ser do sexo feminino, Nise tenha se mudado para o Rio de Janeiro depois de formada. Não é difícil imaginar, em meio a década de 1920, a resistência da sociedade baiana ou alagoana a uma jovem médica.

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Na então capital federal, todavia, a vida também não foi fácil. Nise morou em pensões de segunda categoria e fez refeições em casa de amigos, até que conseguiu ser aprovada em um concurso público. Passou a trabalhar no Hospital Nacional de Alienados, onde começou a ensaiar um modus operandi diferenciado no tratamento dos pacientes. Mas não teve muito tempo. O clima de ódio e denuncismo incitado pelo governo e por setores da imprensa, na época, interrompeu a história da médica.

Nise morava no próprio trabalho. Em seu quarto, uma enfermeira teria encontrado livros marxistas – considerada leitura subversiva. Denunciada, a psiquiatra foi detida no próprio hospital e conduzida ainda com a vestimenta de trabalho. O episódio de intolerância infelizmente encontra paralelo nos dias de hoje.

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Para se ter ideia, recentemente, o blogueiro Rodrigo Constantino, o qual ganhou notoriedade como colunista da revista Veja, divulgou uma lista com nomes de artistas, intelectuais e jornalistas. A conclamação era para que os relacionados fossem boicotados e fustigados por serem o que chamou de “petralhas”. Precedendo a lista, o blogueiro explicou que, para os integrantes de sua Index, “O desprezo público também é muito bem-vindo, como vaias, olhares hostis e até xingamentos. […]”[ii]. No espaço destinado aos comentários sobre a postagem, os leitores do blog de Constantino denunciavam outras pessoas, por suspeitarem serem elas simpatizantes do PT ou do comunismo.

Na prisão, Nise conheceu o conterrâneo escritor Graciliano Ramos (1892-1953) – o qual também estava preso por motivos políticos. O período de reclusão de Graciliano rendeu, aliás, o clássico Memórias do Cárcere (1953).

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Mesmo depois de solta e absolvida, a vida de Nise jamais foi a mesma. Exonerada do antigo trabalho e estigmatizada, a médica passou por dificuldades até ser reincorporada ao serviço público em 1944. Foi lotada no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. Neste espaço, a despeito da oposição de muitos de seus pares, a alagoana entraria para a história ao introduzir a arte no tratamento dos pacientes, em contraposição a práticas sádicas – como o eletrochoque e castigos físicos. No antes marginalizado setor de terapia ocupacional, os pacientes eram convidados a confeccionar, livremente, as suas próprias peças, tais como pinturas e esculturas.

O professor do Instituto de Psicologia da USP, João Frayze-Pereira, relata um dos casos: “Internada em 1937, Adelina Gomes, camponesa humilde, cuja tragédia resumia-se no desejo de ser flor, foi acolhida pela doutora Nise em 1946. Daí em diante, por mais de quatro décadas, pintou e esculpiu todos os dias. O desejo de ser deu lugar ao de fazer. Adelina fez flores”[iii]. Justamente por propugnar a proatividade, no contexto do tratamento, Nise preferia o termo cliente à paciente, já que o último indicava resignação e passividade.

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Outra técnica heterodoxa empregada pela médica – fã de animais, desde a tenra idade – era utilizar cachorros vira-latas como “coterapeutas”. A jornalista Bárbara Mengardo faz saber que em “Um determinado dia, um doente trouxe um cachorro machucado e ela deu condições para que ele tratasse do animal. À medida que o animal melhorava, o doente também melhorava. A partir daí criou um setor de uso do animal em terapia”[iv].

O afeto – antes ausente naquele espaço – passou a abundar, e a recuperação dos pacientes era notória – o que não placou a oposição à médica dentro do hospital. Diante do sucesso das pinturas – reconhecidas por críticos de arte, como Mário Pedrosa (1900-1981) – um diretor do hospital chegou a dizer que “[...] à noite, Nise trocava as obras feitas pelos loucos, por outras, feitas por grandes artistas”[v], revela Bárbara Mengardo.

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É curioso notar que foram os atores do campo da cultura quem primeiro legitimaram o trabalho de Nise e se seus pacientes, e não os pares médicos. Justamente o campo cultural, afeito às vanguardas e, hoje, tão vilipendiado pelos setores conservadores da sociedade.

A repercussão alcançada – sobretudo na imprensa – e a intensa produtividade dos artistas do centro psiquiátrico motivaram a criação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 20 de maio de 1952, idealizado pela própria médica. Antes e depois da inauguração do espaço, no Rio de Janeiro, os trabalhos artísticos foram expostos em locais tão diversos como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (outubro de 1949), Salão Nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (novembro de 1949) e em Zurique, por ocasião do II Congresso de Internacional de Psiquiatria (setembro de 1957). Esta última exposição, aberta por ninguém menos que Carl Gustav Jung (1875-1961)[vi].

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Filme biográfico

O longa Nise: No Coração da Loucura, atualmente nos cinemas, é uma empreitada do diretor carioca Roberto Berliner, conhecido por documentários como Herbert de Perto (2009). Aliás, a experiência como documentarista faz-se sentir aqui.

O enredo se inicia justamente em um momento delicado da vida de Nise da Silveira: o regresso da médica do constrangedor período de reclusão – de cerca de um ano e meio – pelo “crime” de posse de livros marxistas. Portanto, como se não bastasse o fato de ser mulher, em uma área dominada por homens machistas, e de propor uma revolução na psiquiatria, pairava, ainda, sobre Nise, a pecha de comunista – de fato, um crime, no ambiente conservador em que se vivia.

A primeira cena do longa, retrata, justamente, o momento da volta da médica ao trabalho, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. A metafórica tomada inicial, em que Glória Pires, no papel de Nise, precisa bater repetidamente no portão do manicômio (chega a esmurrá-lo), para finalmente ser recebida, já dá pistas do quão difícil será a acolhida das suas ideias pelos colegas. Mas, indica também, desde já, que a médica é persistente.

Em seu trabalho, Berliner humaniza a psiquiatra. E relata o hercúleo esforço de Nise para estruturar o setor de terapia ocupacional do hospital, o qual estava abandonado em detrimento de tratamentos como a eletro-convulsão e a lobotomia – exaltados como inovadores pelos demais psiquiatras de então.

Além de Glória Pires, o longa tem, em seu elenco, Augusto Madeira, Roberta Rodrigues e Felipe Rocha, os quais interpretam a equipe de enfermeiros que trabalham com a médica. Dignos de louvor, constam os atores que interpretam, convincentemente, os internos do Centro Psiquiátrico Nacional: Claudio Jaborandy, Simone Mazzer (irreconhecível, no papel da emblemática paciente Adelina Gomes), Roney Villela, Bernardo Marinho, Flávio Bauraqui, Fabrício Boliveira e Júlio Adrião.

A produção tem rodado festivais pelo mundo, sem deixar jurados e público indiferentes. Prova disso são os prêmios conquistados no Festival de Tóquio (melhor filme e melhor atriz) e no Festival do Rio (melhor filme júri popular).

Conjuntura

O filme surge em um contexto de refluxo do empoderamento das mulheres no Brasil, especialmente nos campos social e político. A primeira mulher eleita para chefiar o executivo federal na história do país foi recentemente afastada do cargo, em um processo controverso e criticado internacionalmente. Em seu lugar, um novo governo foi instalado, sob a liderança do pemedebista Michel Temer. Já na composição da equipe ministerial de Temer, nenhuma mulher foi contemplada. Ou seja, todos os nomeados ministros foram homens, seletividade que não ocorria desde o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), durante a ditadura militar[vii] – o que dá uma noção do tamanho do refluxo.

Como se não bastasse, na esteira do exaltado movimento que levou ao impedimento da presidenta Dilma, alguns políticos ultraconservadores ganharam notória projeção. É o caso do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), o qual ostenta uma vasta coleção de declarações sexistas e de defesa aberta à supressão de direitos das mulheres.

É de Bolsonaro a declaração “já disse que não estupro porque você não merece”, destinada a também parlamentar Maria do Rosário (PT-RS), dentro do congresso nacional, em 2014[viii]. O deputado já havia feito declaração semelhante em 2008, diante das câmeras da Rede TV!. Na ocasião, conforme relata matéria da revista Exame, “Indignada, a deputada [Maria do Rosário] se aproxima dele, que a empurra e a chama de vagabunda”[ix].

Fazendo a vez de zeloso liberal, Bolsonaro também já defendeu redução de direitos trabalhistas das mulheres. Em depoimento trazido à luz pela revista Crescer, da editora Globo, o deputado afirmou: “Se você tem um comércio que emprega 30 pessoas, eu não posso obrigá-lo a empregar 15 mulheres”. Na sequência, o Bolsonaro se coloca no lugar de um empregador: “Entre um homem e uma mulher jovem, o que o empresário pensa? ‘Poxa, essa mulher tá com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade...’ Bonito pra c..., pra c...! Quem que vai pagar a conta? O empregador. No final, ele abate no INSS, mas quebrou o ritmo de trabalho”[x].

Os sinais da crise de empoderamento feminino não se restringem ao meio político. No seio da sociedade civil, a revista Veja, da família Civita, protagonizou um dos atos mais emblemáticos desta nova onda reacionária. Em matéria publicada em 18 de abril, o periódico apresentou, como arquétipo, a então “quase primeira-dama”, Marcela Temer, sob a manchete “Bela, recata e ‘do lar’”. Na matéria, Marcela é tida como uma mulher de sorte, por ter um marido apaixonado, e é descrita como educada e discreta. “Marcela é uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele)”[xi], revela a matéria.

O perfil de Marcela, pela ótica da revista Veja, parece querer devolver às mulheres o posto de primeira-dama, com direito a todos os clichés. De certa forma, Marcela é apresentada como um contraponto saudoso e louvável à mulher turrona e protagonista, personificada na figura da então presidenta Dilma. “Ainda que não dê para comparar a trajetória da presidente [Dilma] com a da vice-primeira-dama, acredito que o objetivo foi mostrar essa diferença de perfil entre as duas”, declarou a professora de Comunicação da pós-graduação da ESPM, Selma Felerico, em depoimento ao portal UOL[xii].

Ainda ao portal UOL, a coordenadora do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, Helena Jacob, esclarece que “O recatada e o 'do lar' vêm de encontro ao 'bela' para formar a imagem de mulher perfeita, que sabe se colocar no lugar dela e é submissa ao marido”. Para a professora de jornalismo, “Essa escolha de palavras foi muito infeliz. Não me espanta a repercussão negativa que o perfil teve, embora no Brasil, ainda exista aquela imagem de que uma mulher foi estuprada porque estava de roupa curta”.

***

Embora sem apoio institucional, e vilipendiada e desprezada pelos colegas, Nise da Silveira estava certa. O movimento antimanicomial é pungente e tem sido cada vez mais respaldado pela legislação. Na Lei nº 10.216, aprovada em 2001, por exemplo, “a mudança de modelo de atendimento aparece como uma sugestão no item IX do parágrafo único, do artigo 2º, expressa como direito da pessoa em ‘ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental’”, explica Silvio Yasui, na obra Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira[xiii].  

Do alto de sua compleição física frágil, a médica alagoana venceu a intolerância política, o machismo avassalador – que se vale, não raro, da ridicularização da outrem – e da desumanidade dos tratamentos propostos pelos seus pares, e protagonizou uma verdadeira ruptura epistemológica na psiquiatria.

Em tempo: o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em cujo portão a médica reincorporada ao serviço público precisou bater repetidas vezes para ser recebida, hoje atende pelo nome de Hospital Instituto Nise da Silveira.



Referências

[i] MENGARDO, Bárbara. Nise da Silveira. In SOUZA, Hamilton (Org.). Grandes cientistas brasileiros. São Paulo: Casa Amarela, s.d. p. 147.

[ii] ZAIDAN. Tiago Eloy. A luta pelo espólio da democracia partidária. Pátria Latina, 12 de abril de 2016. Disponível em: http://www.patrialatina.com.br/a-luta-pelo-espolio-da-democracia-partidaria/. Acesso em 24 de maio de 2016.

[iii] FRAYSE-PEREIRA, João. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política. Revista Estudos Avançados, 17 (49), 2003. p. 197 – 208. p. 207.

[iv] MENGARDO, Bárbara. Nise da Silveira. In SOUZA, Hamilton (Org.). Grandes cientistas brasileiros. São Paulo: Casa Amarela, s.d. p. 153.

[v] Ibid. p. 152.

[vi] DIONISIO, Gustavo Henrique. Museu de Imagens do Inconsciente: considerações sobre sua história. Revista Psicologia Ciência e Profissão, 21 (3), p. 30-35.  Setembro de 2001.

[vii] ARBEX, Thais & BILENKY, Thais. Ministério de Temer deve ser o primeiro sem mulheres desde Geisel. Folha de S. Paulo. 12 de maio de 2016. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1770420-ministeriado-de-temer-deve-ser-o-primeiro-sem-mulheres-desde-geisel.shtml. Acesso em 20 de maio de 2016.

[viii] ARIAS, Juan. “Já disse que não estupro porque você não merece”. El País. 10 de dezembro de 2014. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/10/politica/1418170279_872754.html. Acesso em 20 de junho de 2016.

[ix] SOUZA, Beatriz. 7 vezes em que gays e mulheres foram alvo de Bolsonaro. Revista Exame. 11 de dezembro de 2014. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/7-vezes-em-que-gays-e-mulheres-foram-alvo-de-bolsonaro. Acesso em 20 de maio de 2016.

[x] LIMA, Vanessa. Jair Bolsonaro diz que mulher deve ganhar salário menor porque engravida. Revista Crescer. 23 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://revistacrescer.globo.com/Familia/Maes-e-Trabalho/noticia/2015/02/jair-bolsonaro-diz-que-mulher-deve-ganhar-salario-menor-porque-engravida.html. Acesso em 20 de maio de 2015.

[xi] LINHARES, Juliana. Marcela Temer: bela, recada e “do lar”. Revista Veja. 18 de abril de 2016. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/bela-recatada-e-do-lar. Acesso em 20 de maio de 2016.

[xii] DINIZ, Thais & ANDRADE, Thamires. "Bela, recatada e do lar" é forma infeliz de descrever alguém. Portal UOL. 20 de abril de 2016. Disponível em: http://mulher.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2016/04/20/bela-recatada-e-do-lar-e-forma-infeliz-de-descrever-alguem.htm. Acesso em 21 de maio de 2016.

[xiii] YASUI, Silvio. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010. p. 63.

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