No banco de réus, a chuva
Naquela sala do júri, o primeiro a falar é também aquele a quem menos voz se dá, o Oficial de Justiça, o Sr. Geog Urban Ista:
— Em pé, todos devem ficar! Presidindo este Tribunal de Justiça, Govs Democráticos, o Meritíssimo Senhor Juiz.
Inicia-se o julgamento.
O Meritíssimo, em posse dos poderes a ele outorgados, profere seus primeiros juízos:
— É o Sr. Povo Povão movendo Judicial Ação contra a Sra.
Chuva de Verão. Está iniciada a Sessão. Convoco a se pronunciar a acusação.
Sem quem o defenda e podendo se valer somente de sua própria voz, o Sr. Povão denuncia e acusa a Sra. Chuva de Verão:
— Senhor Juiz, eu, o Sr. Povão, acuso a Sra. Chuva de Verão por todos os danos causados em minha propriedade nos últimos anos.
Prossegue o Sr. Povo:
— Eu, que sempre zelei por meus feitos e conquistas, não suporto mais ver minhas obras serem pela Sra. Chuva de Verão destruídas. Sempre que a Sra. Chuva de Verão chega, nos meses de novembro, ela traz transtornos e perdas. Vem e, quando vai, carrega consigo o pouco que tenho! Por vezes, muitas, chegou, entrou e me desesperançou! Ela, mesmo que muito esperada e, até mesmo, ansiada pelo frescor que sei que provoca, pelas frutas e verduras que traz na sacola, também provoca alagamento e enchente imensa em minha residência. Quando de mansinho chega, faceira, um agradável perfume no ar ela deixa. O problema é quando vem ligeira, braba, forte e arteira! Quando assim chega, Meritíssimo, invade minha casa sem permissão, passando por cima da contenção, e promove a destruição de meus poucos bem-quereres, que são meus móveis, fogão, geladeira, minha televisão.
Minha casa, Juiz, que construí com tanto sacrifício, que me consumiu de sol a sol, cada tijolo assentado com minhas lágrimas e meu suor, é destruída pela Sra. Chuva de Verão. E isso não ocorreu vez ou outra, foram vários os anos, muitas vezes ao longo dos meses. Teve dia em que chegou, adentrou, e ficou ali por horas dentro de minha casa e trouxe consigo aquele cheiro imundo, típico daquilo que a gente faz na privada. Além de acabar com os meus bem-quereres, teve vez em que ela me causou doença, febre, dor, perna inchada. Juiz, faz mais de 30 anos que moro na mesma casinha e todo ano acontece a mesma coisa: chega final de ano e início do outro, a Sra. Chuva de Verão vem e acaba com o pouco de vida que tenho.
Meritíssimo Senhor Juiz retoma a palavra:
— Mais algo a acrescentar na acusação Sr. Povo Povão?
Sr. Povo Povão:
— Não Meritíssimo. Por ora é essa minha falação.
Senhor Juiz:
— Passo a palavra à defesa da Sra. Chuva de Verão.
Em defesa da Sra. Chuva de Verão, se pronuncia o Dr. Especialist Cientist:
— Meritíssimo, minha cliente, a Sra. Chuva de Verão, se declara inocente. Como todos sabem, ela é adorada em todas as partes deste mundo. Entra ano, sai ano, todos a querem, esperam ansiosos por sua presença. Há lugar em que, por ela não estar tão presente como gostariam, as gentes sofrem por sua ausência, até morrem esperando por ela. Chuva de Inverno como é conhecida nesse outro lugar. Lá, se ela não chegar, terra acaba, gado definha, morre, não sobra nenhuma graminha.
Continua a defesa:
— Sim, ela causa estragos na casa do Sr. Povão. Mas, é tudo sem a mínima intensão, já devo deixar aqui declarado de antemão. Quando vai à casa do Sr. Povão, devo salientar, não é sem avisar. Todos os anos, não somente o Sr. Povão, como também todos aqui nesta sala, sabem que minha cliente irá chegar. Vamos à questão: todos aqui conhecem muito bem a personalidade da Sra. Chuva de Verão. Tenho aqui todos os registros, levantados, detalhados e escritos, alguns por mim, que demonstram, ao longo de décadas, sua verdadeira feição: bravia, bruta na estação do ano em que mais quente as temperaturas estão. Esse gênio dela é agravado não por descuido, desrespeito ou ímpeto de agressão, mas sim por conta da ação dos que aqui estão. Ao chegar na cidade, que é onde mora o Sr. Povão, o que encontra a Sra. Chuva de Verão?
Muitas construções de cimento, asfalto, vidro e nenhuma arborização. Tudo isso eleva ainda mais as temperaturas do ambiente, que entra em contato com a umidade do ar, e agrava o ânimo de minha cliente. E já faz um tempão que eu mesmo venho falando o que deve ser feito para evitar esses transtornos causados à Sra. Chuva de Verão, para que, quando ela chegar, estragos não venha a causar, e nos traga apenas o refrescar do ar: não jogar lixo nos rios, para não obstruir o seu caminhar; não construir próximo a córregos; não construa em barrancos que possam deslizar. Por fim, Meritíssimo, minha cliente vem declarar que culpa nenhuma tem dos danos causados nesse lugar.
Volta a palavra ao Sr. Juiz Govs Democráticos:
— Agora todos vamos ouvir muito atentamente o que tem a dizer a Promotora de Justiça que, de longa data, acompanha o caso. Passo a palavra à Promotora Dra. Midiah Conservadora.
A Dra. Midiah Conservadora começa a orientar o caso:
— Senhoras e senhores, que estão sempre de ouvidos bem atentos a me escutar, vocês sabem da minha isenção em tratar dos casos que relato, sem parte tomar de antemão.
Sabem que venho aqui, sempre, para levar luz à questão. E, neste caso, não posso deixar de apontar a verdadeira culpada pelo caso em jurisdição: a Sra. Chuva de Verão!
Segue a Doutora Conservadora:
— O Sr. Estadus Democráticos, que é pai do nosso Sr. Juiz deste caso, valendo-se de sua imensa generosidade e respeito para com aqueles que jurou proteger, dentre eles o Sr. Povo
Povão, gastou vultosas quantias na construção de obras de suma importância para o bom funcionamento de sua propriedade, em especial a cidade. A fim de eliminar o mal da fome, que assombra, sobretudo, o Sr. Povão, o Sr. Estadus Democráticos construiu várias pontes e rodovias com o intento de levar alimentos à casa de todos os seus protegidos, uma vez que os mesmos se encontram espalhados em diversas localidades de sua imensa propriedade.
Segue na acusação à Sra. Chuva de Verão a Dra. Midiah:
— Veja, Meritíssimo, qual o grande mal causado por essa senhora, a Sra. Chuva de Verão: com sua chegada à cidade na estação de temperaturas mais elevadas, muitas das obras construídas tão gentilmente pelo Sr. Estadus são por ela destruídas. Devido a isso, muitos dos protegidos do Sr. Estadus são acometidos por profundas necessidades alimentares. Trouxe ainda este mapa para fundamentar as minhas acusações. Vejam todos: aqui na propriedade do Sr. Estadus a imensa área destinada à plantação de grãos, saliento que estes são ricos em nutrientes, os quais seriam destinados a satisfazer as necessidades de todas as gentes. Atentem-se à barbárie desta senhora. Meu cliente, ao construir estas estradas, pontes, túneis e viadutos tinha a intenção de levar esses grãos a todos os seus protegidos queridos. Porém, a fúria desta mulher destruiu todas essas obras. Não pensem que a crueldade dela parou por ai. Vejam tamanha desgraça provocada por esta senhora. Atentem-se à crueldade dela, pois não se contentou em somente provocar danos à propriedade do Sr. Estadus como também assassinou muitos de seus filhos.
Ela, embora com uma aparência ingênua e frágil, é possuidora de uma gigantesca energia. O Sr. Estadus, nos últimos anos, investiu grandes quantias em sistemas de segurança, como barragens, piscinões e canais, na tentativa de frear os ataques da Sra. Chuva de Verão. Porém, Meritíssimo, esses sistemas não conseguiram conter a fúria da Sra. Chuva. Govs Democráticos, diante dos argumentos aqui levantados e das provas apresentadas, venho exigir a condenação desta senhora, sob a acusação de ser a responsável por todos os danos causados ao Sr. Povão.
O Sr. Juiz Govs Democráticos, retoma a palavra para proferir o veredicto:
— Eu, o Sr. Juiz destas terras, em posse do poder que vocês conferiram a mim, de julgar a pertinência dos casos a mim apresentados e de implementar as ações que eu mesmo julgue necessárias, não vejo alternativa senão a de declarar a Sra. Chuva de Verão culpada por todos os danos causados.
Como, neste momento, não se encontra presente neste Tribunal a Sra. Chuva de Verão, eu mesmo vou mandar construir algumas obras para que possamos prendê-la, contê-la, quando ela chegar na próxima estação e, com isso, vamos aliviar a dor do Povão. Não prometo grandes realizações, pois aqui todos sabem dos poderes dessa senhora. E, com isso, encerro o julgamento.
E o Sr. Povão, como ficará no próximo verão?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
