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Elizabeth Carvalho

Jornalista, escritora e documentarista, mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e correspondente de 2012 a 2022 da Globonews em Berlim e Paris

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Nosso gigante e o retorno da utopia

Fora do Brasil, a dimensão da volta ao poder de um homem da grandeza de Luiz Inácio Lula da Silva é vista e sentida na sua integridade

Lula é eleito presidente do Brasil pela terceira vez (Foto: Ricardo Stuckert)

Como chuva abençoada depois de uma longa estiagem, o dia seguinte às eleições de 30

de outubro de 2022 foi fartamente regado com uma confraternização efusiva e solidária

de cidadãos anônimos que circulam à minha volta a 10 mil quilômetros do lugar onde

Luiz Inácio Lula da Silva acaba de inaugurar um novo capítulo na história de nosso

indecifrável Brasil.

No curto trajeto que separa a porta de minha casa da estação mais próxima de metrô em

Paris, o casal Robert e Marie Blanqui deixaram os clientes esperando no balcão da

lavanderia e vieram me saudar efusivamente na calçada. Cadena, minha vizinha

siciliana, saiu apressada de sua cantina ao lado, enxugando as mãos no avental; trouxe

copinhos de Marsala, prum brinde rápido em plena rua. A garçonete Sévérine

abandonou a bandeja sobre uma mesa na calçada em frente ao café, me presenteou

com um abraço. Um aceno para o banco de jardim do outro lado da rua, e Habib,

professor de música de origem senegalesa, soltou sua voz de barítono e improvisou um

“vi-ve-le Bré-sil, fo-ra Bolsonaro sob o aplauso de todos.

Assim transcorreu o dia inteiro. Um dia de surpreendente celebração, considerando que

estamos na França e nenhum dos personagens citados jamais pisou no Brasil. Dezenas

de amigos, mais ou menos próximos; intelectuais importantes com quem gravei

entrevistas durante oito anos; fontes recorrentes; companheiros com mais ou menos

afinidade política, insubmissos, ecologistas, comunistas, socialistas; uma profusão de

mensagens calorosas derramadas sobre o celular, uma atrás da outra. Neste pedaço do

mundo, em que homens e mulheres são ainda capazes de resgatar pela gentileza o

sentimento da utopia no dobrar de uma esquina, o Brasil que emerge da vitória apertada

das urnas parece recuperar no imaginário de todos um alívio profundo, e a idéia de um

futuro comum que interessa verdadeiramente começar a construir.

Fora do Brasil, a dimensão da volta ao poder de um homem da grandeza de Luiz Inácio

Lula da Silva é vista e sentida na sua integridade, sem as distorções da miopia imposta

no Brasil pelos apoios acanhados e mesquinhos de uma elite que se juntou a ele para

sobreviver à catástrofe bolsonarista. Lula é um gigante político, um fenômeno que uma

nação precisa atravessar muito tempo para construir. Sua coragem, seu carisma e sua

tenacidade borraram uma a uma as marcas dos carimbos de crimes que tentaram impor

à sua imagem. São qualidades incorporadas à história de um líder que retorna à cena

política internacional, num momento em que o mundo padece de absoluta escassez de

ideias novas e de chefes de Estado com capacidade de despertar empatia e admiração.

A 10 mil quilômetros do Brasil, os anônimos que integram a grande classe média de um

país tão mais igualitário como a França - como o casal Blanqui, Cadena, Sévérine e

Habib - cultivam bem esta percepção. Na velha e desgastada Europa, onde as ilusões

parecem a cada dia encolher de tamanho, o destino de um país novo, distante e solar

como o Brasil, parece despertar mais interesse do que o destino da Ucrânia.

As apostas dobram o tamanho do desafio: Lula tem que operar o resgate definitivo de

um país ao qual foi imposto um retrocesso ao tempo das cavernas, onde vingou o

racismo colonial, a misoginia e a fome. E precisa ao mesmo tempo desenvolver um

projeto coerente para os recursos excepcionais que abundam num território de

dimensões continentais, mais do que nunca indispensáveis para a sobrevivência do

planeta diante da catástrofe climática que se avizinha.

Inquestionavelmente, este é um tema central que mobiliza todo o debate na sociedade

europeia. Lula está certo ao afirmar que tem diante de si uma missão civilizatória.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.