Nosso gigante e o retorno da utopia
Fora do Brasil, a dimensão da volta ao poder de um homem da grandeza de Luiz Inácio Lula da Silva é vista e sentida na sua integridade
Como chuva abençoada depois de uma longa estiagem, o dia seguinte às eleições de 30
de outubro de 2022 foi fartamente regado com uma confraternização efusiva e solidária
de cidadãos anônimos que circulam à minha volta a 10 mil quilômetros do lugar onde
Luiz Inácio Lula da Silva acaba de inaugurar um novo capítulo na história de nosso
indecifrável Brasil.
No curto trajeto que separa a porta de minha casa da estação mais próxima de metrô em
Paris, o casal Robert e Marie Blanqui deixaram os clientes esperando no balcão da
lavanderia e vieram me saudar efusivamente na calçada. Cadena, minha vizinha
siciliana, saiu apressada de sua cantina ao lado, enxugando as mãos no avental; trouxe
copinhos de Marsala, prum brinde rápido em plena rua. A garçonete Sévérine
abandonou a bandeja sobre uma mesa na calçada em frente ao café, me presenteou
com um abraço. Um aceno para o banco de jardim do outro lado da rua, e Habib,
professor de música de origem senegalesa, soltou sua voz de barítono e improvisou um
“vi-ve-le Bré-sil, fo-ra Bolsonaro sob o aplauso de todos.
Assim transcorreu o dia inteiro. Um dia de surpreendente celebração, considerando que
estamos na França e nenhum dos personagens citados jamais pisou no Brasil. Dezenas
de amigos, mais ou menos próximos; intelectuais importantes com quem gravei
entrevistas durante oito anos; fontes recorrentes; companheiros com mais ou menos
afinidade política, insubmissos, ecologistas, comunistas, socialistas; uma profusão de
mensagens calorosas derramadas sobre o celular, uma atrás da outra. Neste pedaço do
mundo, em que homens e mulheres são ainda capazes de resgatar pela gentileza o
sentimento da utopia no dobrar de uma esquina, o Brasil que emerge da vitória apertada
das urnas parece recuperar no imaginário de todos um alívio profundo, e a idéia de um
futuro comum que interessa verdadeiramente começar a construir.
Fora do Brasil, a dimensão da volta ao poder de um homem da grandeza de Luiz Inácio
Lula da Silva é vista e sentida na sua integridade, sem as distorções da miopia imposta
no Brasil pelos apoios acanhados e mesquinhos de uma elite que se juntou a ele para
sobreviver à catástrofe bolsonarista. Lula é um gigante político, um fenômeno que uma
nação precisa atravessar muito tempo para construir. Sua coragem, seu carisma e sua
tenacidade borraram uma a uma as marcas dos carimbos de crimes que tentaram impor
à sua imagem. São qualidades incorporadas à história de um líder que retorna à cena
política internacional, num momento em que o mundo padece de absoluta escassez de
ideias novas e de chefes de Estado com capacidade de despertar empatia e admiração.
A 10 mil quilômetros do Brasil, os anônimos que integram a grande classe média de um
país tão mais igualitário como a França - como o casal Blanqui, Cadena, Sévérine e
Habib - cultivam bem esta percepção. Na velha e desgastada Europa, onde as ilusões
parecem a cada dia encolher de tamanho, o destino de um país novo, distante e solar
como o Brasil, parece despertar mais interesse do que o destino da Ucrânia.
As apostas dobram o tamanho do desafio: Lula tem que operar o resgate definitivo de
um país ao qual foi imposto um retrocesso ao tempo das cavernas, onde vingou o
racismo colonial, a misoginia e a fome. E precisa ao mesmo tempo desenvolver um
projeto coerente para os recursos excepcionais que abundam num território de
dimensões continentais, mais do que nunca indispensáveis para a sobrevivência do
planeta diante da catástrofe climática que se avizinha.
Inquestionavelmente, este é um tema central que mobiliza todo o debate na sociedade
europeia. Lula está certo ao afirmar que tem diante de si uma missão civilizatória.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

