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Pedro Marchioro

Doutor em sociologia, professor e escritor

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Nova intervenção humanitária na Venezuela

Missão da ONU sobre a Venezuela repete teses da oposição e reforça narrativas de intervenção internacional

Maduro saúda militantes no Congresso do PSUV (Foto: Telesur)

Em paralelo (ou junto) à subida de tom dos Estados Unidos com a Venezuela, abre-se mais uma investida de caráter pseudo-humanitário contra o país. A intitulada Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos sobre a Venezuela, ligada à ONU, mostra-se preocupada com a intensificação das perseguições políticas de opositores ao governo de Nicolás Maduro: "O Estado aumentou novamente a repressão em momentos e eventos de maior tensão política, como foi a posse presidencial em janeiro (...) através de detenções em massa", disse à imprensa a presidente da Missão, Marta Valiñas. Patricia Tappatá Valdez, outra integrante da Missão, declarou: "Diante da submissão da Justiça ao Executivo [venezuelano], a única esperança de alcançar justiça para as vítimas na Venezuela repousa sobre as instâncias internacionais".

De início, causa estranhamento que esses que pedem ação de instâncias internacionais sejam de uma Missão estreitamente ligada à ONU. Ora, a ONU é uma – senão a principal – instância internacional. A reportagem da Folha dessa segunda-feira, 22, é cuidadosa em ressalvar que a Missão não fala em nome da ONU, mas sua ligação é inegavelmente estreita, umbilical, poderíamos dizer. É a ONU que divulga os trabalhos da Missão e encaminha seus relatórios. Aliás, a mesma sentença proferida pela integrante da Missão pode ser encontrada no título da matéria em sua página inicial: “Venezuela: La única esperanza de encontrar justicia para las víctimas reposa sobre las instancias Internacionales”. Ou seja, em clara concordância com as conclusões e achados da Missão. É a ONU também que a financia, como afirma seu último informe: “A investigação se viu seriamente prejudicada pela crise de liquidez e financeira que sofre a Secretaria das Nações Unidas [...] que brinda a Missão com o suporte para desenvolver seu trabalho”. Portanto, Missão e ONU se confundem. Esse é um ponto.

Mas, senão à ONU, então a quem a Missão estaria apelando?

Segundo a Missão, o número de prisões, mortes e violações dos direitos humanos com a conivência e/ou participação do Estado venezuelano tem aumentado de forma atípica, devido 1) aos protestos de oposição nas ruas, que, por sua vez, se devem 2) às eleições fraudadas que reelegeram Nicolás Maduro para presidente em 28 de julho de 2024. Notemos que na reportagem (e em manobra já por demais conhecida) a Folha não usa diretamente o termo “fraude” – resguardando assim uma aparência de imparcialidade –, mas o terceiriza e alavanca seu nível em termos de “amplamente considerada fraudulenta pela comunidade internacional”. Os termos “amplo” e “internacional” são mobilizados justamente para conotar um grande consenso, absoluto, universal.

Mas a acusação de fraude não é ampla na Venezuela, pelo contrário, e nem recente, datando ainda dos governos Chávez. Nas eleições de 2013, Henrique Capriles, principal candidato da oposição à presidência, declarava, antes mesmo do processo eleitoral, que não reconheceria seus resultados. Em 2024, foram mais de 10 nomes e partidos que se candidataram para as eleições presidenciais. De início, seria estranho que, em eleições tão amplas e universalmente consideradas suspeitas, esse número de candidatos ainda depositasse nelas suas esperanças.

Reconheceram a legitimidade do processo eleitoral os candidatos Benjamín Rausseo (Confederação Nacional Democrática, Conde), Daniel Ceballos (AREPA e Vontade Popular), José Brito (coligação Primeiro Venezuela, Min-Unidade e Unidade Visão Venezuela), Luis Ratti (Direita Democrática Popular), Luis Eduardo Martínez (Ação Democrática) e Javier Bertucci (El Cambio), ainda que este último exigisse “a auditoria de todas as atas, de todos os centros de votação”.

Não se pronunciaram publicamente os candidatos Antonio Ecarri (Aliança Lápiz) e Claudio Fermín (Soluções pela Venezuela). E, finalmente, não reconheceram os resultados das urnas: Enrique Márquez (Centrados), Leopoldo López (Vontade Popular) e Edmundo González Urrutia, candidato de María Corina Machado, principal nome da oposição, a “Milei venezuelana”, como a chamou Delcy Rodríguez, vice-presidente do país. Portanto, foram apenas três os candidatos que contestaram o processo.

Lembrar que Corina Machado nomeou Urrutia seu substituto (este também com um histórico de participação nas barbáries perpetradas em El Salvador nos anos 1980, junto a agentes da CIA) por estar impedida desde 2023 de se candidatar, em um processo que começou em 2015, principalmente devido ao seu abandono do cargo de deputada pelo Estado de Miranda para ser embaixadora da OEA no Panamá e exigir o reforço da intervenção estrangeira contra o seu país. Com isso, ela violava o Artigo 149 da Constituição venezuelana, que impede funcionários públicos de aceitar cargos de governos estrangeiros sem a autorização do Congresso. A Controladoria-Geral da República, por sua vez, condenou-a por "inconsistência e ocultação" de ativos na declaração de bens que apresentou no período em que foi deputada na Assembleia Nacional (2011-2014). Esses são os delitos leves.

Pelo Ministério Público, Machado foi acusada em junho de 2014 por sua participação nos episódios violentos ocorridos durante os protestos opositores, contando com atos de sequestro, explosões e incêndios de prédios públicos, antenas de telecomunicação e transportes, ataques às sedes de partidos de oposição, coerção sob violência de trabalhadores avessos aos protestos ou simpatizantes do chavismo (o que resultou em mortes brutais), sabotagem e alta traição à pátria. Nesse mesmo ano, o MP da Venezuela aceitou as acusações contra Machado sobre o plano de golpe de Estado após recolher e-mails trocados entre ela e outros opositores que tratavam de um plano golpista “com apoio de Washington”.

Essa seria sua segunda tentativa. Machado foi a fundadora da ONG Súmate, que protagonizou a tentativa de golpe contra o então presidente Hugo Chávez em 2002, em uma espécie de vingança (à la Eduardo Bolsonaro) contra o responsável pela moderação dos ganhos bilionários do pai, Enrique Machado Zuloaga, dono de um império no ramo de metais e energia. Os crimes de alta traição sempre se revelaram em ação conjunta com agências estrangeiras ligadas ao departamento de segurança dos Estados Unidos, como a NED, em encontros com o ex-presidente Bush durante e após o governo provisório que durou as 48 horas do sequestro de Chávez, e na também malfadada empreitada como embaixadora do Panamá na OEA. Além de ter tomado parte no concerto da presidência mágica de Juan Guaidó.

Nem Corina Machado nem Guaidó foram presos ou condenados à revelia da lei. Até pouco tempo, Guaidó caminhava tranquilamente pelas ruas de Caracas, sendo hostilizado não por agentes do Estado, como seria de se esperar de uma ditadura, mas por civis revoltados com suas desavergonhadas traições (que incluem a participação no roubo dos cerca de 20 bilhões das reservas internacionais de seu país). (Recordemos o vídeo em que o presidente de mentirinha é retirado a cadeiradas de um restaurante).

Enfim, Corina Machado sempre esteve ligada a tudo que há de ilegítimo segundo os parâmetros da Venezuela e das Nações Unidas. Paro a lista por aqui para não nos afastarmos demais do propósito do artigo, que reclama ainda dois pontos mais. Na internet há imagens e vídeos dos protestos e atos aqui relatados, dos quais o leitor poderá tirar suas próprias conclusões. Sobre Machado, sugiro ao leitor a matéria do Brasil de Fato: Quem é María Corina Machado, opositora por trás da campanha da direita na Venezuela.

A Missão utiliza as mesmas teses levantadas por María Corina Machado e companhia para condenar as eleições presidenciais e, portanto, a atual gestão de Maduro. De modo que, à luz do histórico dessa personagem, podemos inferir a que tipo de instância internacional e a que tipo de intervenção se está demandando.

Mas o que é e o que faz a Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos sobre a Venezuela, e quem são esses que falam em seu nome?

Continua...

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.