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Pedro Marchioro

Doutor em sociologia, professor e escritor

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Nova intervenção humanitária na Venezuela (parte 2)

Relatórios da ONU sobre a Venezuela carecem de provas sólidas e refletem interesses do Grupo de Lima e dos EUA

Nicolás Maduro (Foto: Miraflores Palace/Handout via Reuters)

Mas o que é e o que faz a Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos sobre a Venezuela, e quem são esses que falam em seu nome?

Em 27 de setembro de 2019, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas estabeleceu a Missão Internacional Independente de Investigação sobre a República Bolivariana da Venezuela, através da Resolução 42/15, para avaliar violações de direitos humanos cometidas desde 2014. O mandato da Missão de Investigação foi estendido até outubro de 2026, por meio da Resolução 57/36. Desde então, a Missão vem divulgando em notas, comunicados e informes os resultados de suas investigações.

Em 2024, através da ONU, a entidade publicou um documento de 161 páginas no qual faz uma análise do processo político venezuelano de 1º de setembro de 2023 a 31 de agosto de 2024. No texto, a organização indica que houve “prisões arbitrárias e indícios de tortura” depois das eleições e parte para o detalhamento vago, diga-se de passagem, dos casos.

Em 8 de setembro de 2025, a Missão publicou um informe que “apresenta uma atualização das graves violações de Direitos Humanos ocorridas desde o período imediatamente prévio às eleições presidenciais de 2024 até agosto de 2025”. Portanto, é uma continuação – um resumo – do comunicado de 2024. São 17 páginas, disponíveis no site da ONU, que tratam dos seguintes tópicos:

Introdução: na qual se define a Missão, mas, principalmente, rechaça os "resultados eleitorais presidenciais proclamados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que deram a vitória a Nicolás Maduro sem que se publicassem as atas de votação";

Metodologia: curta e insuficiente dada a gravidade do tema, em que explica como foram construídas as provas e os padrões de prova, através de mais de 200 entrevistas, nenhuma identificada, com exceção de dois ou três casos que ganharam a mídia internacional, tal como o de Lucas Hunter, norte-americano que, a meu ver, estava no lugar errado e na hora errada quando foi preso.

E demais tópicos como: Contexto, Atualização dos padrões de violações, Detenções arbitrárias, Privações arbitrárias de vida, Desaparição forçada, Tortura e outros tratos ou penas cruéis, inumanas ou degradantes, Violência sexual e baseada em gênero, Restrições ao espaço público, Conclusões e recomendações.

Em suma, o informe traz denúncias sérias, que devem ser meditadas com a seriedade e responsabilidade que merece qualquer discussão que envolva direitos humanos. Porém, não traz elementos fortes, não constrói linhas demonstrativas que permitam uma leitura conclusiva sobre as acusações e nem sobre a participação deliberada por parte do Estado. Ao contrário, em geral o texto circunstancia acontecimentos bárbaros, do tipo tortura, violência sexual, invasão domiciliar, de modo a escandalizar a consciência do leitor, mas sem que isso seja acompanhado de provas consistentes. Além disso, o documento faz falsas alegações e outras ainda – o que concorre para o enfraquecimento do documento –, que contradizem suas próprias conclusões.

A título de exemplo, transcrevo duas passagens. Na página 4, parágrafo 10, o texto diz que "a repressão saldou com a morte de 25 pessoas e a detenção de mais de 2.220 pessoas". O governo venezuelano confirmou essas prisões e, quanto às mortes, apenas ressalta que decorreram dos atentados durante o protesto. Portanto, até aqui governo venezuelano e Missão estão de acordo. O que o informe da Missão omite é que dentre essas mortes estão cinco ou seis agentes do Estado, mais especificamente da Guarda Nacional Bolivariana, que perderam suas vidas em atentados perpetrados por parte dos guarimbas, grupos radicais da oposição ligados a Corina Machado e Juan Guaidó. Os guarimbas também cometeram assassinatos – omitidos no documento – que marcaram pelo nível de crueldade contra jovens simpáticos ou suspeitos de serem apoiadores do chavismo (ver, por exemplo, o caso de Orlando Figuera, de 22 anos, linchado, esfaqueado e incendiado após ser acusado de ser chavista durante uma marcha na zona leste de Caracas).

Mais à frente, no mesmo parágrafo, o texto assume: "Se bem que neste período se produziram desencarceramentos e liberações de pessoas detidas". Pois, na seção sobre desencarceramentos e liberações, no parágrafo 34, o informe confirma que as pessoas detidas nos protestos pós-eleitorais, ou seja, até final de agosto de 2024, começaram a ser soltas a partir de novembro do mesmo ano, sendo finalizada a liberação em março de 2025.

Foram 2.006 pessoas liberadas daquelas 2.200 que haviam sido presas. As demais foram trocadas no acordo que a Venezuela fez com os Estados Unidos para libertar os 252 venezuelanos que estavam presos em El Salvador. Isso o documento também confirma, porém não menciona que esses venezuelanos resgatados eram simples imigrantes detidos à revelia de qualquer legalidade (uma vez que lhes foi negado o direito de defesa e, dado o devido processo, de deportação) e enviados às masmorras de segurança máxima de El Salvador!

Seria ignorância ou má-fé, por parte de uma Missão que tem por razão de existir a preocupação nuclear com direitos humanos?

E a seção finaliza afirmando, no parágrafo 39, que: "Na data da publicação deste informe, restam quatro NNA (nomes não autorizados) detidos no marco do processo eleitoral”. Ora, na calamidade social, verdadeira guerra civil (com grupos da oposição armados) que se viu nos dias posteriores às eleições – corpos esfaqueados no chão, outros incendiados em desespero, explosões de prédios, sabotagem de comunicação e transporte –, contar com apenas quatro detidos após um ano é saldo de governo moderado demais (permissivo demais, eu diria).

Por fim, um último ponto a destacar sobre a Missão é a sua intrínseca ligação com o tal Grupo de Lima. A resolução por meio da qual se instituiu seu mandato foi apresentada em 2019 pela coalizão de governos que integram o Grupo de Lima, que inclui Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Guatemala, Guiana, Honduras, Paraguai, Peru e o Brasil. Esse grupo, com seus bem-intencionados membros, fortemente comprometidos com os direitos humanos, foi criado em 2017 sob os auspícios diretos dos Estados Unidos (como consta na Declaração de Lima), com o objetivo único de "abordar a crítica situação da Venezuela e explorar formas de contribuir para a restauração da democracia naquele país através de uma saída pacífica e negociada". Acreditamos, pois conhecemos o histórico humanista, por exemplo, de Iván Duque, Bolsonaro e Jimmy Morales.

Outros países com governos que eram ou passaram a ser progressistas, como é o caso do Brasil, não estão isentos desse ridículo. Caberia investigar como se posicionaram e como se posicionam acerca de cada ponto, em cada reunião. Investigar também o papel de quem são os encarregados da Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos sobre a Venezuela. Isso é assunto para outro artigo.

Termino por apontar o seguinte: debaixo do bombardeio midiático ocidental sobre o universo venezuelano e da confusão proposital em que esse bombardeio nos coloca, a atitude minimamente prudente a ser tomada é se perguntar sobre as provas dos assassinatos e violações. As reportagens e informes da Missão apenas alegam ter provas suficientes de que foram os agentes do Estado venezuelano os autores das mortes. Mas onde estão as provas? Questionarmo-nos também sobre o contexto em que, em digressão, são enunciadas as acusações que traz o informe, a Missão que o produziu, o grupo que instituiu a Missão, o concerto de países que levantaram o Grupo de Lima.

A nós, brasileiros, que vivemos desde a eleição do presidente Lula e a derrota não aceita de Jair Bolsonaro; que vivemos e lembramos (porque há os que surpreendentemente esquecem) os anos ininterruptos de pregação de golpe, ódio e violência; que vimos a tentativa de chamar um golpe no 8 de janeiro, as prisões e condenações de seus participantes, homens e mulheres, jovens e “velhinhos”; nós, que atualmente assistimos às reclamações desse mesmo setor golpista sobre o uso da violência por parte deste governo brasileiro (ditatorial e comunista), denúncias de torturas e maus-tratos, ou melhor, de violação dos direitos humanos, nós temos o direito e o dever de duvidar, dar um passo atrás na condenação que se faz seja do governo da Venezuela ou de qualquer outro.

A Venezuela, assim como Cuba e Nicarágua, é um país pequeno e sob forte ataque, tanto político quanto econômico e militar. O embargo econômico, ressalte-se, é a forma mais covarde de guerra: envolve, por exemplo, o cerceamento de fármacos e elementos para sua produção, atingindo diretamente a população mais frágil. Foi utilizado antes, durante e depois da pandemia, e ainda assim houve menos de 6 mil mortes por Covid naquele país. A Venezuela guarda a maior reserva de petróleo do mundo e uma das maiores reservas de ouro. Está a alguns quilômetros dos Estados Unidos e possui commodities fundamentais e uma saída estratégica para a crise capital em que o país e todo o Norte Global se encontram.

Os EUA, por sua vez, demiurgo de todas essas missões, ataques e entidades aqui apontadas, não têm e nem nunca tiveram compromisso com direitos humanos. Não têm e nem nunca tiveram nada contra ditaduras. Seus principais aliados no Oriente Médio são Israel, que por ora dispensa comentários, e a Arábia Saudita. Este, aliado do Norte há mais de cinco décadas, responsável pela morte (em um só dia!) de 47 prisioneiros, em 2 de janeiro de 2016, fato confirmado pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, foi convertido por Washington, devido ao petróleo e às condições favoráveis que oferece, “na mais justa e exuberante democracia”, afirma Moniz Bandeira. “E o presidente Obama jamais diria que o rei ‘must step out’, como fizera com o coronel Gaddafi e Bashar al-Assad. Pelo contrário, armava-o com o mais moderno material bélico produzido pela indústria dos Estados Unidos. E o mesmo faziam França, Grã-Bretanha e Alemanha”.

A lista dos golpes de Estado que o “irmão do norte” promoveu, de bases militares que sustenta, de orquestração de tráfico de drogas (um deles julgado e condenado pelo próprio Congresso norte-americano no caso dos Contras), de assassinatos dentro e fora do país, de perseguição no passado e no presente, circula pela internet e é infindável. Agora mesmo, uma polícia sob o comando de uma secretária espantosamente néscia circula pelas ruas do país sem identificação, prendendo todo e qualquer indivíduo que traga aparência, sotaque ou letra de imigrante. Fazem-no sem identificação, sem mandato, a troco de cumprir a promessa feita em campanha de prender e expulsar mais de 10 milhões de imigrantes por ano. Essa expulsão inclui desaparecer nas masmorras de Guantánamo e El Salvador sem qualquer atenção aos acordos internacionais de proteção dos direitos humanos.

A lei utilizada para isso – Lei de Inimigos Estrangeiros – é de 1789! Desde maio desse ano o governo está "considerando ativamente" suspender o habeas corpus, ou seja, o direito de uma pessoa a contestar nos tribunais sua detenção, como alegou o vice-chefe de gabinete Stephen Miller. Lembro ainda que aquele governo retirou os subsídios à defensoria pública do país, o que tornou possível assistirmos a imagens de crianças de 4 anos de idade fazendo suas próprias defesas perante o tribunal. Reconheçamos: quanta lição de humanismo e civilidade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.