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Homero Gottardello

Jornalista, Bacharel em Direito, Música (habilitação em “Teoria Geral da Música”) e Belas-Artes (habilitação em “Cinema”)

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Novo ‘carro popular’ é tiro na cabeça do consumidor

Preço cairá mísero 1,5%, crédito ficará mais caro e dinheiro do contribuinte irá para as matrizes das montadoras, no exterior

Reunião entre membros do governo Lula e carros estacionados (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil | REUTERS/Paulo Whitaker)
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O anúncio de um “novo carro popular” pelo governo federal criou muita expectativa nos brasileiros, mas a decepção foi maior do que a esperança, já que tudo não passou de um balão de ensaio. A redução nos preços dos 0 km, na ponta do lápis, será mínima, para não dizer nula, já que só o aumento midiático da demanda encarecerá os financiamentos. “Enviamos o projeto para a Fazenda, que pediu 15 dias para dar seu parecer fiscal e, só então, publicarmos uma medida provisória”, disse o vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin. “Não podemos dizer quanto as montadoras darão de desconto, mas calculamos algo entre 1,5% e 10,7%”, acrescentou, enquanto fazia um cálculo informal ao ser indagado sem, depois, garantir que o novo popular baixe dos R$ 60 mil – hoje, o Renault Kwid 1.0 Zen, já na versão 2024, tem preço sugerido de R$ 68.190. “Com o desconto extra tarifário para vendas diretas, podemos chegar nesta casa”, ponderou Alckmin, sem dizer uma só palavra sobre veículos elétricos. Ou seja: aquele sonho que muita gente teve de quarta para quinta-feira, em que comprava um EV por R$ 55 mil, como os chineses fazem todos os dias aos montes, não se realizará.

Na prática, o pacote do “novo carro popular” repetirá a mesmíssima fórmula do governo de Dilma Rousseff, quando a renúncia fiscal do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) não barateou os 0 km, já que, desobrigadas a repassarem o benefício tributário, as montadoras – sempre umas ‘coitadinhas’ – recompuseram suas margens de lucro e enviaram bilhões do dinheiro dos contribuintes para suas matrizes, na Europa, Estados Unidos e Japão. Pior, os financiamentos custarão mais, que já a venda de crédito por meio de seus próprios bancos é um negócio até mais lucrativo para os fabricantes do que a do próprio automóvel – hoje, 70% das vendas são à vista e apenas 30%, a prazo, percentual que o governo quer inverter, colocando mais gente pendurada no boleto. Portanto, são as grandes transnacionais que lucrarão em dobro com o “novo popular” e quem se endividar para comprar um 0 km vai dar um tiro na própria cabeça.

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Em 2012, o governo petista zerou o IPI dos 0 km, mas a medida que implicou na renúncia de R$ 26 bilhões de dinheiro público não aumentou as vendas, que recuaram 0,3% na época. Naquele ano, o objetivo da desoneração não era o aquecimento do mercado interno, mas a manutenção dos empregos no setor automotivo e, neste ponto, foram criadas mais de 27 mil vagas de trabalho, mesmo que temporárias. Porém, o resultado a médio prazo foi negativo, já que que, entre 2014 e 16, as montadoras demitiram 200 mil trabalhadores. Mas basta olhar para os US$ 14,6 bilhões (na época, equivalentes a R$ 25,9 bilhões) em remessas de lucro enviadas para as matrizes, no exterior, que o leitor verá para onde foi o dinheiro, há 11 anos, e para ele irá agora.

O pior de tudo, no entanto, é o “novo carro popular” não inserir o Brasil na virada da eletromobilidade, o que contradiz o discurso do próprio vice-presidente, durante o anúncio oficial o pacote: “O parque fabril está muito depreciado e precisamos modernizar a indústria automotiva brasileira. Nosso plano prevê crédito de R$ 2 bilhões, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDS) e um estímulo de natureza tributária, este último para o orçamento de 2024”, disse Alckmin. Ou seja, para compensar o sucateamento das subsidiárias brasileiras, largadas aqui pelas matrizes, já que o país só produz veículos descontinuados no exterior ou em versões ultrapassadas (equipadas com motores a combustão), o dinheiro dos contribuintes será aplicado em bens de capital obsoletos de empresas estrangeiras, alienígenas.

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Virada de chave

Independentemente da religião, da orientação sexual ou política de cada um dos brasileiros, é preciso que todos tenham uma coisa bem clara, em mente: que a única maneira de o setor automotivo avançar, se recuperando de 20 anos de paralisação, é virando a chave para a eletromobilidade, suas novas tecnologias, suas novas cadeias produtivas e oportunidades. Em 1985, quando o Brasil produzia quase um milhão de carros de passeio e comerciais leves por ano, a produção chinesa não passava de 5.200 veículos e, portanto, era 180 vezes menor. Hoje, só no primeiro quadrimestre deste ano foram vendidas 4,3 milhões de unidades no mercado chinês, contra menos de 590 mil unidades vendidas entre janeiro e abril, no Brasil – ou seja, sete vezes menos. É como se, nos últimos 40 anos, a China tivesse tirado a desvantagem e ainda a compensasse na forma de 1.260 veículos para cada unidade feita ou vendida no Brasil.

“Seguimos sem um plano nacional de estímulo para os EVs, mesmo com um crescimento constante nas vendas de modelos híbridos e 100% elétricos no país”, comenta o presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), Adalberto Maluf. Apesar do crescimento de 41%, em relação a 2022, este segmento de mercado ainda é amplamente dominado por híbridos puros (respondeu por 62% das 49,2 mil unidades comercializadas no país, no ano passado), aqueles que não possuem baterias recarregáveis por fontes externa e, portanto, não rodam em modo exclusivamente elétrico. Os EVs, por exemplo, ficaram com uma fatia de 17%, muito próximos dos híbridos plug-in (com 21%). “Precisamos de incentivo para as tecnologias de baixa emissão”, clama Maluf, que vê o Brasil em descompasso com os esforços globais de descarbonização.

E enquanto nos tornamos mercado de desova de modelos precarizados e tecnologia moribundas, a China avança na América Latina e na África, abocanhando as exportações brasileiras com EVs mais baratos que os carros “made in Brazil” e grandes aportes infraestruturais, desde o setor portuário até a rede de distribuição. O resultado pode ser visto nos números chineses de exportação, de 1,37 milhão de unidades (alta de 89%, em relação a 2022), no primeiro quadrimestre deste ano, contra menos de 153 mil unidades do Brasil, no mesmo período – se recortarmos apenas híbridos plug-in e EVs, as exportações chinesas totalizaram 348 mil unidades, com um crescimento impressionante de 170%, sobre o ano passado.

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‘Novo Fusca’ é elétrico

Na China, maior mercado de automóveis do mundo, as vendas EVs (471 mil unidades, no primeiro quadrimestre deste ano) já superaram as de todos os carros de passeio, no Brasil (464 mil unidades), somadas todas as motorizações. Em 2035, a União Europeia (EU) imporá, depois de um período de escalonamento que já começou, emissão zero para todos os veículos leves. Em outras palavras, todos os 0 km vendidos por lá serão 100% elétricos. Há uma verdadeira corrida por cada fatia deste mercado que, hoje, gira em torno de 9,5 milhões de unidades anuais e a cadeia produtiva que ficar fora da virada da eletromobilidade terá tanto valor, no futuro, quanto um fabricante de locomotivas a vapor, de marias-fumaça. Precisamos qualificar o mercado brasileiro da mesma forma como os chineses fizeram, partindo de um ponto quase 200 vezes mais atrasado que o nosso.

Muitas pessoas não sabem, mas a maior marca de EVs do mundo não é a Tesla. Os norte-americanos foram ultrapassados pela titânica BYD, no ano passado, e, contrariamente ao que muita gente imagina, o maior mercado da marca do fanfarrão Elon Musk não são os Estados Unidos, mas a própria China – onde a Tesla vendeu 229 mil unidades, entre janeiro e abril, contra 181 mil unidades, nos EUA. O “novo Fusca” também vem de trás da Grande Muralha, um EV que recebeu mais de 10 mil pedidos só no primeiro dia de vendas. O Seagull, novo compacto da BYD, tem preço básico de 78.800 yuans (o equivalente a R$ 57.200), alcance de até 405 quilômetros sem necessidade de recarga das baterias e consumo – de eletricidade – equivalente a 62,5 km/l. É maior (3,78 metros de comprimento), mais espaçoso e bem equipado que um Renault Kwid.

A “neoindustrialização” prometida pelo governo Lula e que todos aguardamos, ansiosamente, passa pelo setor automotivo e a inserção do país na virada da eletromobilidade é uma necessidade urgentíssima, apesar de contrária aos interesses da Associação Brasileira do Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), entidade que não representa nem o trabalhador, nem o povo brasileiros, mas transnacionais que operam por aqui num modelo, isso sim, neocolonial, subsidiando seus produtos no além-mar com bilhões de dólares garimpados aqui. “Os incentivos são transitórios, para este momento de muita ociosidade das montadoras, e vão privilegiar a mais eficiência energética e o maior índice de nacionalização”, destaca Alckmin. Temo que o “novo popular” irá, no máximo, adiar o fim da indústria automotiva nacional.


 

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