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Clarissa De Franco

Psicóloga, doutora em Ciências da Religião, com pós-doutorado em Estudos de Gênero. Profa. Titular da Universidade Metodista de São Paulo

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O aborto e o controle sobre as vidas precárias

O poder sobre os corpos manifestado no combate ferrenho e incondicional ao aborto é um desses temas cabeludos que evocam pânico moral instantâneo

(Foto: REUTERS / YVES HERMAN)
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Foucault já anunciava que um corpo dócil é um corpo que pode ser controlado. “Você suportaria ficar só mais um pouquinho?”, disse a dona do poder da lei sobre os corpos para uma criança de onze anos grávida, para evitar que sua mãe a levasse para realizar um aborto, previsto por lei.  

Inacreditável o que se faz em nome do poder. O poder sobre os corpos manifestado no combate ferrenho e incondicional ao aborto é um desses temas cabeludos que evocam pânico moral instantâneo. Automaticamente, ao ouvir a palavra “aborto”, muita gente se vê diante de um hipócrita chamado social para defender “a vida”.

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Mas de que vida estamos falando? Um exemplo sobre a névoa que paira sobre este tema, é que, ao se discutir sobre o aborto, discute-se exaustivamente sobre quando se começa a vida do embrião, em um distorcido e trágico apagamento da vida da mulher que já está ali, com sua vulnerabilidade exposta. No caso em questão, é pior. É da vida de uma criança grávida que estamos falando. Aquela que já tem uma inscrição social, já tem laços, identidade, documento, amigas/os, vida escolar, sonhos para o futuro. Uma vida que já foi negligenciada, já que o estupro que sofrera só veio à tona em função da gravidez. Uma vida com a qual a sociedade já vem falhando. Esta vida, para as bandeiras contra o aborto, pode se tornar ainda mais vulnerável acomodando a criação de um novo ser, e desencadeando, assim, novas vulnerabilidades. Um ciclo infindável de abandonos. 

O Estado e seus tentáculos sociais têm nos abandonando à sorte de não escolhas sob a narrativa cínica de proteção à vida. Não por acaso, os partidos que têm defendido publicamente a causa antiaborto são os que se escondem atrás de máscaras distorcidas que não correspondem aos seus atos: “cristã” (PSC), “democrática” (MDB), “patriota” (PATRI) e “liberal” (PL). Quer algo mais cristão, democrático, patriota e liberal que colocar uma criança grávida, vítima de estupro, em um abrigo, sem poder voltar para a casa? Imaginem os sentimentos dessa criança, diante deste Estado que protege a vida de um feto fruto de estupro, mas não é capaz de defender a sua vida? Não estaria este Estado impingindo uma punição à garota já violentada de várias maneiras?

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Para as vidas precárias, como lembra Judith Butler, direitos reprodutivos se tornam um campo ficcional ou meramente discursivo. Somente as redes de apoio têm atuado como um sistema paralelo de cuidado, amparo e proteção, uma vez que o Estado e seus braços institucionais como o Direito e a Medicina não têm se proposto a dar conta da magnitude de tais tarefas. E quando têm, o fazem a partir da lógica do controle.

Gostaria de contar para essa gente cristã, democrática, patriota e liberal, que Santa Brígida, padroeira irlandesa das parteiras, é também conhecida por auxiliar em abortos, em geral ligados a casos de violência, estupro, ou outros tipos de vulnerabilidades. Não só ela, mas também São Ciarán, santo católico do século 7, é envolto em relatos de “cura” de crimes sexuais, conduzindo o útero a se esvaziar sob a força e proteção do símbolo da cruz e da condução divina. Essas histórias podem ser lidas em Vitae Sanctorum Hiberniae, de Charles Plummer.

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Quem protege a vida, cuida de quem já está aqui. Fortalece as redes de cuidado, de acolhimento, de escuta. Não usa as regras e leis para justificar a racionalidade patriarcal, invasiva e violenta. Cuida do direito à dignidade, do direito ao fim das várias violências que cercam nossos corpos cotidianamente: violência sexual, obstétrica, violência de ser obrigada a ter um filho ou filha mesmo sem condições físicas, emocionais e financeiras. Quem verdadeiramente protege a vida, não quer corpos dóceis, e sim, livres.

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