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Eugênio Trivinho

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

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O absurdo universal da falácia extremista

Da hospedaria quadrianual atual do Palácio do Planalto ao púlpito da ONU em 2019, a história da diplomacia brasileira concedeu ao mundo exemplo cavalar de discurso rugoso (outros alcunharam-no grosseiro e divisionista) e inverídico

Jair Bolsonaro, discursa na Assembleia Geral da ONU (Foto: Alan Santos/PR)
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Da hospedaria quadrianual atual do Palácio do Planalto ao púlpito da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2019, a história da diplomacia brasileira concedeu ao mundo exemplo cavalar de discurso rugoso (outros alcunharam-no grosseiro e divisionista) e inverídico (já o disseram: no mínimo, desonesto, de tão ideológico) -- uma granada de fake news institucional, prevista como factóide de extrema direita, em recado político inóspito no coração do ainda principal órgão multilateral de defesa dos direitos humanos em escala global. Somente o princípio histórico da democracia como valor universal, partilhado pela maioria dos países civilizados, pode condescender exemplarmente com o fato de que a ONU experiencie, dentro de suas próprias dependências, o espetáculo de apedrejamento às suas vidraças internas.

Certamente, não é a primeira vez que a repugnância se arvora a contravalor absoluto na história ocidental. Não obstante, além de neofascista, a conferência de abertura nas Nações Unidas, galvanizada pelo staff responsável pela produção do texto lido in loco, foi impressionantemente desasseada tanto nas intenções dolosas, quanto na visibilidade bucal (por exemplo, em relação aos povos e terras indígenas, à autodeterminação da Venezuela e à menção velada à França). A coragem narrativa -- no caso, tipicamente insolente, não sem esgar -- com que o centro da ONU foi utilizado pela extrema direita verde-amarela para falar a uma audiência internacional qualificada proveio do submundo político e cognitivo mais alarmante que o país já produziu desde o processo de reconstrução da República, a partir da Constituição Federal de 1988. Dificilmente haverá, na trajetória honrosa da diplomacia nacional, ribanceira maior que a vista no último 24 de setembro, claramente radicada nos porões da ditadura civil-militar das décadas de 1960 a 1980, a cada semana mais assanhada desde janeiro último, por ora mais nas redes sociais do que nas ruas.

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Não se deve apostar uma gota de suor mental no fato de que os estratos mais esclarecidos e espalhados no mundo civilizado acreditem haver alguma verdade – justamente ela, tão invocada – na deturpação belicosa que os cerca de 30 minutos de nossa berlinda textual em Nova York significaram sobre (e para) a nossa história recente.

Não foram poucos os especialistas, da imprensa às Universidades, que sinalizaram que esse discurso, de par com o resultado das últimas eleições nacionais em 2018, já entrou para os alfarrábios da história como pérola emblemática e doméstica de uma perturbadora tendência de decadência humanitária em curso.Independentemente do sinal que anunciam, inúmeras manifestações no YouTube não deixaram de celebrar esse absurdo como uma espécie, digamos, de “gozo político” orgulhoso do extremismo de inspiração militar e policial, que doravante resolveu dar-se portas às escâncaras, sem limites, Brasil afora.Do ponto de vista argumentativo, a estrutura da conferência inaugural da Assembleia Geral foi obscenamente deprimente: a simples menção preambular a um suposto "restabelecimento da verdade" sobre fatos desencadeou o despejo público de uma série insuportável de ataques infames e clichês de senso-comum de extrema direita, amplamente nocivos ao país por ameaçá-lo de isolamento político no cenário consolidado das democracias desenvolvidas. Prova-o a formidável escalada dessa repercussão negativa na imprensa internacional.

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O arco de adulterações ideológicas da falácia extremista na ONU é insuflado pela fixação paranoica e inculta numa ideia delirante de socialismo, a qual, pelo tom escabroso, só interessa à intolerância e à ignorância. É assim que o fascismo, em todas as suas variantes, sempre procede: reescreve a história da "verdade" (!) de modo dissuasivamente fabulador, isto é, espalhando mentiras, num festival inurbano de aberrações intelectivas que rearranjam propositalmente a semântica das palavras para tentar condicionar previamente -- de tanto provocar audição repetitiva -- truculências piores eventualmente por vir.

Reportando-se a ninguém, que já é remeter exclusivamente a pares da própria grei eleitoral fundamentalista, a conferência se efetivou na expectativa de que o mundo inteiro, a começar pelos estratos mais antenados, acreditasse no que era lido in loco no prompt, longe da postura institucional esperada. O amadorismo da narrativa federal atual -- conforme o Itamaraty a tem recomendado desde o início de 2019 -- fez o Brazil, infelizmente, gozar da própria ONU, ao agredir, de modo torpe, a mundialmente reconhecida autoridade de Raoni Metuktire, cacique ambientalista brasileiro de longa tradição, como se a microfonia agressora estivesse no centro imaginário e bilioso de um palanque sanitário improvisado.

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O texto, aliás, atacou, em nome de quase 210 milhões de brasileiros, quem jamais deveria receber bombas, enquanto, em outro extremo, subsumiu beijo à mão de quem, antes, mereceria certa distância ou, no mínimo, tratamento sob respiro mais ponderado. Por motivos autoexplicáveis, a incivilidade e a arrogância sempre zombaram da prudência.Em verdade, seria, em prol do princípio da saúde, para se ter não raiva, mas piedade da narrativa e da rede na qual se embasa, não contivesse ela rudimentos explícitos de neofascismo. Seja como for, pesa, muitíssimo, no fígado, que ainda seja necessário realizar uma análise mais acurada desse pequeno discurso oficial na ONU em nome de um país gigantesco e multicultural. Se, com efeito, a tarefa contribuir minimamente para livrar o Brasil do absurdo universal da falácia extremista, terá valido a pena.

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