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Gustavo Conde

Gustavo Conde é linguista.

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O amor, o sorriso e a flor contra o caos

"A experiência estética de João Gilberto, no entanto e para além de quaisquer delineamentos reparativos, transcende os enquadramentos. Tudo já se falou sobre João Gilberto e nada se falou sobre João Gilberto. Ele é esfinge até no seu ocaso, no abandono dessa elite que o tomou como propriedade intelectual nos anos 60 e que depois o cuspiu, com direito autoral, com tudo", diz o linguista Gustavo Conde sobre a morte de João Gilberto e seus significados para a cultura brasileira

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A bossa nova não é elite. Porque a bossa nova é soberana. Essa ideia de associar a bossa nova e João Gilberto à elite e a essa suposta sofisticação de classe é mais um simulacro dessa elite amarga e solitária brasileira.

O glamour da bossa nova é mais uma das facetas de nosso complexo de vira-lata. A bossa nova é popular. A bossa nova é samba. A bossa nova é negra. 

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Não é porque um gênero musical é delicado e complexo que ele tem de ser da elite. É exatamente o contrário. 

Ao que se acresce, sincopadamente: não é porque um tipo de concepção musical nasce nos apartamentos do Leblon e de Copacabana que ele deva ser naturalmente ‘intelectualizado’. Não é porque um gênero musical nasce do jazz americano que ele deva ser carimbado com o clichê da ‘nobreza estilística’ – isso é viralatice –, afinal o jazz americano é negro. 

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Não é porque uma suposta jazzificação do samba se consagra enquanto estrutura musical, que a dimensão dominante deva ser uma ou outra. A bossa nova não nasceu em Harvard. 

Em tempo: a soberania estética da bossa nova é incompatível com a subserviência estática da elite. É preciso muita coragem para desconstruir o samba, para alongá-lo nas ramificações harmônicas do jazz, para inserir um eixo cancional temático que fale de amor e sonho sem a pieguice dos nossos brucutus de classe média. 

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Amor soberania e sonho não ornam com a palavra elite. Não no Brasil. 

João Gilberto é tudo isso e menos um pouco. É um continente em que os rótulos valem tanto quanto a reputação de juiz de província. 

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Um território do samba que teve seu revestimento crítico espancado por vivandeiras da viralatice aplicada, que se deslumbrou com a hipótese de o Brasil ter sido supostamente promovido ao primeiro mundo da canção, que entoou loas a Frank Sinatra como se ele fosse o passaporte definitivo para a nossa existência. 

Entende-se em parte José Ramos Tinhorão que, por sua vez, autoenganou-se em não enxergar a soberania da bossa. Ele preferiu comprar o simulacro disponível no mercado mirrado da nossa fauna crítica. 

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E experiência estética de João Gilberto, no entanto e para além de quaisquer delineamentos reparativos, transcende os enquadramentos. Tudo já se falou sobre João Gilberto e nada se falou sobre João Gilberto. Ele é esfinge até no seu ocaso, no abandono dessa elite que o tomou como propriedade intelectual nos anos 60 e que depois o cuspiu, com direito autoral, com tudo.  

Como ele, João, estava e está muito acima desse submundo, quem lamenta somos nós, que apenas amamos ouvi-lo. 

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João Gilberto e suas significações, portanto, são mais um capítulo dessa luta vira-lata insana travada neste país estranho chamado Brasil. 

A batalha judicial por seu espólio é só uma das materializações desse egoísmo pequeno-burguês associado a burrice e insensibilidade. 

Canibalizaram tanto João que seu caráter perfeccionista ainda foi estereotipado como excentricidade, um passo retórico previsível na desconstrução ‘de segurança’ do gênio: “é gênio, mas é excêntrico, portanto seja lá o que ele for, a interpretação é nossa e ele ‘nos pertence’”. 

A sanha estereotipante da nossa elite subscreveu a crítica que, por sua vez, subscreveu o imaginário. As biografias bossa-novistas são puro charme e zero consequência, um amontoado de fofoquinhas e deslumbramentos no limite do insuportável – saboroso apena para quem não tem o que fazer e tão profundo quanto uma revista de palavras-cruzadas. 

Ocorre que a morte de João Gilberto acende alguns sinais de alerta – e de esperança. João encarnava a delicadeza e sua partida poderia significar a perda dessa dimensão delicada dos afetos de contenção. 

A potência controlada, a economia vocal, a respiração, o estalar do palato, a estabilização sonora, a atmosfera cancional, o rito, o acorde na inteireza límpida, a divisão prosódica, os regimes infinitos de desacelerações internas são traços de absorção e restauração da ordem melódica. 

João foi uma resposta. 

Ele é tão singular quanto produto de seu tempo e de seu contexto histórico.

João conferiu autoestima ao Brasil, arrastou a percepção política de um país que se assanhava para o mundo. 

O lado B da bossa nova no mundo poucos brasileiros conhecem, mas é bem mais interessante que esse biscoito fino que se nos chega através das editorias controladas do cultismo e da idolatria subdesenvolvida. 

A bossa nova, essa monumentalidade de origem popular brasileira, realmente impressionou o mundo, talvez tanto quanto um governo democrático que alçou o Brasil à condição de liderança global em um passado recente e ‘saudosista’. 

João é delicadeza, assim como delicada nos foi a democracia, na polissemia do termo.

Sua partida em nosso eclipse social, nessa overdose de vergonha internacional que nos assombra como uma maldição dos deuses, simboliza o fim de uma era, mas ao mesmo tempo o nascimento de outra – não necessariamente tenebrosa como as vísceras de nossa elite interrompida. 

A resposta ao ódio, ao medo, à truculência de espírito é a bossa nova política do amor, do sorriso e da flor, as mais poderosas armas até hoje inventadas contra o fascismo. 

João foi um antifacista. Ele combateu a violência do excesso, a mesmice da previsibilidade melódica e o sufocamento do ceticismo estético. 

Sua musicalidade é amor e a injustiça que sofreu em vida por sua teimosia cênica e acústica é só aquele detalhe já conhecido que chancela a grandeza das personagens históricas. 

A morte liberta João dessas veleidades mundanas tão afeitas aos antibrasileiros, parasitas de si mesmos, do próprio futuro e da própria cultura. 

E o caso clássico da construção Roseana, da morte enquanto encantamento, enquanto liberdade – essa palavra tão surrada e tão necessária em nosso presente momento à espreita de um futuro. 

A rigor, a semântica falha quando se trata de João Gilberto, assim como todos os regimes de qualificações e adjetivações. 

Poder-se-ia dizer, na simplicidade do argumento e da delicadeza: João não morreu, ele sincopou. 

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