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José Luís Ferraro

Doutor em Educação e professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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O Brasil de 2020 e a banalidade do mal

O mal tem sido banalizado, por exemplo, ao longo desse período de isolamento social, quando o empresariado pede a volta de seus trabalhadores em meio a pior crise sanitária dos últimos tempos. Isso é sintomático, é o reflexo de um grupo que se sente representado pelo ódio, que avaliza tal postura em nome de interesses próprios

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Após assistir o julgamento de Adolf Eichmann em 1961, Hannah Arendt escreveu seu livro intitulado “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. O ex-oficial da SS que havia sido capturado na Argentina, foi levado a Israel para responder pelos crimes cometidos na Alemanha no período em que trabalhava para Hitler.

Iniciado o julgamento, foram os traços de personalidade do réu que surpreenderam Arendt. Eichmann apresentava-se como um sujeito tranquilo – assumindo as acusações que lhe estavam sendo imputadas – enquanto justificava seus atos como o funcionário padrão que coloca a necessidade do cumprimento de seu dever acima de qualquer coisa.

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A naturalidade de Eichmann ao admitir seus crimes era assombrosa. A serenidade e a frieza que o acompanhavam em cada resposta repousavam em sua (falta de) compreensão sobre os fatos. Afinal, como ele poderia ser considerado um criminoso se estava apenas seguindo ordens de seus superiores, a serviço do führer? Eichmann era um dos responsáveis pela logística envolvida no transporte de cidadãos judeus para os campos de concentração onde milhares de vidas foram ceifadas.

A esse posicionamento que o levara a relativizar suas ações negativas durante o nazismo; que o fizera assumir com naturalidade seus atos, mas que o impedia de projetar sobre eles quaisquer juízos de valor, que Arendt se referiu como sendo a “banalidade do mal”. 

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O problema que emerge a partir disso é tanto de ordem moral, quanto ética e diz respeito à tomada do Estado – e principalmente de um Estado de exceção como a Alemanha nazista – como medida de legalidade. É imoral porque o réu não fez juízo de valor sobre os nefastos preceitos que regiam a filosofia do nazismo; é ético porque em se admitindo conduta diferente, permanece-se fiel a um ethos de destruição normalizado pelo regime em nome de princípios espúrios que regulavam as narrativas construídas sobre os modos de vida da “família tradicional” e dos “cidadãos de bem” durante o nazismo. Eichmann era o típico cidadão de bem de seu tempo no país em que viveu. Um cumpridor de obrigações. Sem pensar, desempenhava seu papel como mais uma engrenagem do Estado nazista. Era assim que se defendia ao enfrentar seu julgamento.

É comum em fenômenos de massa como o nazismo, que as relações idolátricas surjam, impedindo a compreensão da realidade pelo sujeito idólatra. Há uma espécie de renúncia – por vezes consciente – à realidade, o que aproxima a idolatria da barbárie. Vemos a história se repetir com o Bolsonarismo, no Brasil: mesmo sendo fantasiosa a narrativa de uma luta contra a corrupção criada em torno de Bolsonaro – quando as evidências apontam o contrário desde antes de sua eleição – construiu-se, para alguns, em torno de sua imagem, um “mito”.

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O “mito”, ao longo de toda sua carreira, destilou preconceito e investiu contra os direitos humanos; foi machista, misógino e racista. No entanto, teve suas posturas e opiniões relativizadas em nome de um ódio de classe, personificado pela luta contra um partido em específico. Bolsonaro criou a narrativa do inimigo comum do povo, investindo em uma novilíngua lexicalmente pobre – de fácil compreensão de todos, mas que ao mesmo tempo barateia conceitos e suprime palavras, impedindo qualquer tipo de reflexão: estratégias típicas do nazismo e do fascismo.

Mais do que nunca a narrativa para seus fins mirabolantes – como a necessidade de contenção da ameaça comunista – tentam justificar a sordidez utilizada como meios para sua manutenção no poder. E para continuar justificando-se, os inimigos criados foram muitos: a equivocadamente denominada “ideologia de gênero”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”, a “extrema imprensa”, etc. Significantes totalmente vazios, mas que querem dar a impressão de que os excessos e as investidas contra o regime democrático são necessários na luta contra o mal personificado por qualquer pessoa que ouse empunhar uma bandeira vermelha – afinal a nossa, “nunca será” – lembrando, ainda, que estratégia de apropriação de símbolos nacionais não é nova e fomenta a cisão social por meio do discurso “nós contra eles”.O tempo passa e cada vez mais, sem nenhum tipo de esforço, percebemos na sociedade brasileira de 2020 traços daquilo que Hannah Arendt observou em Eichmann: a trivialidade do mal. O mal sendo banalizado, justificado.

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O mal tem sido banalizado, por exemplo, ao longo desse período de isolamento social, quando o empresariado pede a volta de seus trabalhadores em meio a pior crise sanitária dos últimos tempos. Isso é sintomático, é o reflexo de um grupo que se sente representado pelo ódio, que avaliza tal postura em nome de interesses próprios. Por outro lado expõe nossa solidariedade frágil, nossa falha enquanto sociedade que insiste em normalizar o anormal. Para quem banaliza o mal, vidas parecem não ser valorizadas, mas valoradas.

Percebemos que a situação é grave – e que estamos presos na pior das impensáveis distopias – quando nessa semana um simples “E daí?”, do atual presidente da República em relação ao número de vítimas da pandemia de Covid-19, escancarou ainda mais sua a imoralidade. Desconsiderar a dor do luto alheio é a quintessência da banalidade do mal.

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