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Luciano Teles

Professor adjunto de História do Brasil e da Amazônia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e autor de artigos e livros sobre a história da imprensa operária e do movimento de trabalhadores no Amazonas.

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O Brasil e o sistema de cotas

As cotas são um belo instrumento de reparação histórica e de combate às desigualdades étnico-raciais

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Recentemente um pastor chamado Josué Bengtson, paulista, mas que já foi ex-deputado federal pelo PTB do Pará, disse em um vídeo, que veio a público, que não voaria em um avião cujo piloto fosse alguém que tivesse adentrado ao curso de formação pelo sistema de cotas raciais. O que o referido pastor e ex-deputado federal efetivamente quis fazer foi atacar o sistema de cotas raciais implantado no país.

Tentando se justificar, o pastor acabou se atabalhoando ainda mais, pois disse o seguinte: “Reconheço a importância e a necessidade das cotas para que se inicie um processo de inclusão. Mas defendo que elas devam ser oferecidas a estudantes oriundos do ensino público, independentemente da sua cor de pele. Cotas raciais reforçam justamente a ideia que mais devemos combater: a que a humanidade se divide em raças. Só existe uma raça, a humana. E nós humanos somos todos iguais e temos a mesma capacidade, independente de cor. O que falta para muitos é a oportunidade. E é aí que entram as cotas. Quando disponibilizamos cotas para os mais pobres estamos fazendo justiça social, e isso é transformador!” (ver aqui).

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Ora, vejamos. Primeiro, o exemplo dado por ele para atacar o sistema de cotas raciais não foi muito adequado, pois se trata de uma formação (de piloto) que é específica e que possui uma dinâmica própria. Além disso, o sistema de cotas, sobretudo o que ele quis criticar, direciona-se as universidades e aos concursos públicos federais, respectivamente por intermédio das Leis n. 12.711, de agosto de 2012 e n. 12.990, de 9 de junho de 2014. Segundo, o pastor desconhece que 50% das vagas nas universidades federais são destinadas a estudante de escolas públicas e, dessas vagas, 25% destinam-se a pessoas com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo (sendo necessário, neste caso, ter cursado os três anos do ensino médio em escola pública). Portanto, o sistema de cotas atende, mesmo que minimamente, aos que possuem baixa renda e não está restrito apenas as cotas raciais, estas fazem parte do conjunto das cotas. Por fim, e é o ponto que queremos tocar, o que marca a fala do pastor Josué Bengtson é a questão da cor, o que fica explícito quando ele diz que as vagas deveriam ser “oferecidas a estudantes oriundos do ensino público, independentemente da sua cor de pele”, ou ainda quando aponta que “nós humanos somos todos iguais e temos a mesma capacidade, independente de cor”. 

Bengtson não se encontra sozinho neste ataque às cotas raciais. Vamos falar sobre elas e, sobre isto, a história tem muito a nos informar. Vamos começar pela questão étnico-racial. Na América Portuguesa, um dos pilares da economia colonial foi a escravidão, indígena e africana. A escravidão indígena deixou de existir especialmente na segunda metade do século XVIII, com as reformas pombalinas. Já a escravidão africana persistiu até fins do século XIX, especificamente até o ano de 1888. 

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Desde quando os europeus pisaram em terras Tupiniquins, Tupinambás e Muras, trataram de produzir hierarquias sociais desiguais, com base em instrumentos de dominação e controle, que tiveram impactos dramáticos no universo social daqueles que foram atingidos pela colonização nas Américas. Povos indígenas viram os seus mundos se (des)integrarem numa nova ordem social (ordem colonial) e povos africanos foram transportados à força para a América Portuguesa. Uma reconhecida violência! Muitos perderam a vida, muitos resistiram e travaram uma luta pelo fim da escravidão, pelo respeito às diferenças étnico-raciais e por menos exploração social.

Mas o ponto fundamental é que o Estado Brasileiro pós-abolição, após mais de 200 anos de escravidão indígena e mais de 300 anos de escravidão africana, não se preocupou em elaborar projetos de inclusão social direcionados aos indígenas – embora aqui houvesse tentativas de assimilação e tutela, o que é diferente de inclusão social – e muito menos aos africanos e afrodescendentes. Muito pelo contrário, intentou-se silenciar/invisibilizar/eliminar os povos indígenas e afrodescendentes com projetos de branqueamento nacional. O Brasil não queria ter/ver a sua face indígena e africana. O projeto era europeu. A marca desse processo histórico, que em tempos negacionistas querem efetivamente ocultar, é a marginalização e a exclusão social. 

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O movimento negro, assim como o movimento indígena, lutou para mudar tal situação social. E continuam lutando. Não obstante, particularmente em relação ao movimento negro, este levantou a bandeira da construção de uma política de reparação social (dos danos sociais e históricos resultantes da escravidão, da marginalização e da exclusão social), que incluía em seu bojo o respeito e a valorização étnico-racial, a criminalização do racismo e o sistema de cotas raciais. As conquistas vieram, não sem críticas e uma constante luta para a manutenção e o avanço delas.

À vista disso, o que a posição do pastor revela é um desconhecimento do processo da formação histórica do Brasil e, como desdobramento disso, ele realiza uma inversão das coisas: a de que as cotas raciais reforçam a divisão em raças da humanidade. As cotas se inserem numa política de reparação social (conhecida mais recentemente como política de ações afirmativas). Reparação social de anos de violência física e simbólica, de dominação e exclusão social, que efetivamente precisam ser reparadas e superadas no Brasil e no mundo de hoje.

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Infelizmente ao pastor se juntam outros tantos que reproduzem e amplificam esse mesmo discurso. Só para dar mais um exemplo, vamos citar o Ali Kamel e o seu livro intitulado “Não somos racistas”, que foi lançado no ano de 2006, justamente quando o debate sobre as cotas raciais estavam se intensificando nas universidades públicas brasileiras. A resposta foi imediata no sentido de desconstruir tal assertiva através de exemplos concretos retirados do cotidiano contemporâneo e da própria história do Brasil. E hoje não há como fugir e não reconhecer que no Brasil há um racismo estrutural que necessita ser superado urgentemente.

Outra questão que tem relação direta com os chamados “cotistas”: a desconfiança sobre o seu processo de formação e sua futura atuação profissional, o que o pastor também tentou colocar em xeque com o exemplo inadequado que mencionamos anteriormente. Uma reportagem da Época (não só deste veículo, como outros também) revelou o sucesso no processo de formação dos primeiros “cotistas”. Excelentes profissionais (conferir aqui).

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As cotas são um belo instrumento de reparação histórica e de combate às desigualdades étnico-raciais. Deixe-os respirar pastor!

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