O Brasil precisa avançar em democracia deliberativa
Não há dúvidas de que é preciso reconstruirmos a máquina democrática com ela trabalhando forte e sem parar
Por Silvia Cervellini
Representantes de 85 organizações de 30 países em seis continentes se reuniram em Berlim, esta semana, para apresentarem experiências e apontarem novos caminhos a um tema inadiável no planeta: deliberação cidadã. Três especialistas brasileiras em opinião pública e cofundadoras do coletivo Delibera Brasil falaram na "Conferência de P&D em Democracia 2022", na capital alemã, representando o nosso país no encontro promovido pela Rede Democracy R&D (DR&D).
Dentro desta rede internacional de organizações, associações e pessoas, atuamos para ajudar os tomadores de decisão [como prefeitos, governadores, vereadores, deputados e senadores] a construírem projetos de lei e ações de interesse público com a efetiva participação da sociedade, legitimando e facilitando a atuação parlamentar como também o desenvolvimento de políticas públicas assertivas. A deliberação cidadã trata-se, em resumo, de colocar em prática e aprimorar o que de fato é democracia, em níveis local e global.
Por meio das Assembleias Cidadãs, moradores das cidades são convidados, por sorteio, a participar da formatação de decisões públicas. A seleção aleatória garante não só transparência e diversidade nas discussões como também evita conflitos de influência e pressões partidárias.
Desde o último encontro presencial da Rede DR&D — em fevereiro de 2020, na Inglaterra, antes da pandemia da Covid-19 — tornou-se ainda mais clara uma urgência mundial: a promoção de processos capazes de permitir que cada pessoa, na ampla gama de diversidades e individualidades que compõe as sociedades modernas, sinta-se representada com legitimidade em instâncias responsáveis pelo desenho e a implementação de políticas públicas que a afetam.
A pandemia e suas terríveis sequelas, a ansiedade reinante na Conferência do Clima COP 26 pela lentidão no enfrentamento às mudanças climáticas, a guerra da Ucrânia e o agravamento das tensões internacionais, a recorrência e persistência da polarização política e o desrespeito às instituições democráticas fazem com que as crises se “empilhem”. Isso tudo exige uma resolutividade acompanhada de legitimidade que a democracia representativa, sozinha, não consegue entregar.
As Assembleias Cidadãs [também conhecidas como Júris Cidadãos, Painéis Cidadãos e Minipúblicos] e os chamados “Sorteios Cívicos” foram modelados a partir de uma prática inventada ainda na década de 1970. Naqueles tempos, o fim da Guerra Fria permitiu a discussão e busca explícita de mecanismos de decisão política que complementassem e aprofundassem a democracia representativa.
O objetivo era tornar a democracia efetivamente mais próxima e responsiva perante cidadãs e cidadãos. Esta necessidade já era tão presente que a inovação democrática surgiu paralelamente nos Estados Unidos, com os Júris Cidadãos de Ned Crosby; e na Alemanha, com as Células de Planejamento de Peter Dienel. Crosby e Dienel se conheceram anos depois, quando formaram o embrião do que se tornaria a Rede DR&D.
O “boom” das Assembleias Cidadãs — ou “onda deliberativa”, como elas vêm sendo chamadas pela OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] — foi alavancado pelo exemplo emblemático da “Assembleia Cidadã sobre Aborto”, na Irlanda. Realizada em 2017, a iniciativa ajudou aquele país a resolver um impasse político que se arrastava por décadas.
São muitos os projetos de destaque desenvolvidos por países que integram a DR&D. É o caso do “Observatório da cidade”, na Espanha; dos “Diálogos sobre o clima rural”, nos Estados Unidos; do “Conselho econômico dos cidadãos”, no Reino Unido; das “Loterias do governo estudantil”, na Bolívia; do “Grupo participante do orçamento do cidadão”, na Coréia; do “Aumente democracia”, na Nigéria, e da “Assembleia Cidadã sobre a gestão de resíduos sólidos”, no Brasil — desenvolvida pelo Delibera, em Fortaleza (CE).
Pioneiro no nosso país em realização e promoção de Assembleias Cidadãs e Minipúblicos, o Delibera Brasil também desenvolveu o projeto Decidadania em cidades como a baiana Ilhéus, com o “Orla Viva”; e os municípios paulistas de São Miguel Paulista e Pirituba-Jaraguá, com o “(Re)Age SP”, entre outros. As próximas cidades que experienciarão o projeto serão Francisco Morato (SP), Salvador (BA) e Toritama (PE), onde a população será convidada a debater e deliberar sobre clima, saneamento, sustentabilidade e preservação ambiental.
Esta e outras experiências de sucesso implementadas pelo coletivo brasileiro foram compartilhadas por nós, esta semana, na Conferência de Berlim. Conduzimos as palestras “Let a thousand flowers bloom: scaling out and replicating citizen deliberation” [“Deixe mil flores desabrocharem: ampliando e replicando a deliberação cidadã”], quinta-feira (29); e “Pre-deliberation learning focused on lower formal educational groups make better assemblies” [“O aprendizado pré-deliberativo focado em grupos educacionais formais de níveis baixos faz melhores assembleias”], ontem (30). “Como assegurar que minorias tenham representatividade e especificidades asseguradas nos processos deliberativos?” e “Como as assembleias cidadãs podem ajudar no enfrentamento da emergência climática?” foram outras questões analisadas durante a Conferência, sobre as quais queremos obter respostas para o planeta; especialmente, ao Sul Global.
Não há dúvidas de que é preciso reconstruirmos a máquina democrática com ela trabalhando forte e sem parar. Estamos acompanhando processos e contextos políticos complexos e temos a convicção de que a deliberação cidadã e o sorteio cívico devem ser levados a sério. Eles são preciosos aliados no enfrentamento de problemas públicos em que não há um caminho evidentemente melhor do que outro, mas sobre os quais a sociedade deve ser convidada a ponderar, avaliar bem os custos e benefícios e fazer escolhas, levando em conta o bem comum e as consequências futuras de suas deliberações.
Coautoras:
Ana Lucia Lima é fundadora das organizações “Conhecimento Social - Estratégia e Gestão” e “Conhecimento Social”. Foi diretora do Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope. É cofundadora do Delibera Brasil.
Fernanda Imperio é formada em Administração pela FGV, com especialização em Marketing e larga experiência em processos participativos de produção de conhecimento e avaliação na área social. É também cofundadora e coordenadora do Delibera Brasil.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

