O caráter de mão dupla das Conferências Nacionais
Sem devolutiva efetiva do Estado, as conferências nacionais correm o risco de virar meros rituais consultivos
"A cultura do dominador tentou alimentar o medo dentro de nós, tentou nos fazer escolher a segurança em vez do risco, a semelhança em vez da diversidade. Deslocar-se nesse medo, descobrir o que nos conecta, nos divertir com nossas diferenças; esse é o processo que nos aproxima, que nos oferece um mundo de valores compartilhados, de uma comunidade significativa". Com essa reflexão potente de Bell Hooks, na obra Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, somos instados a reconhecer a potência pedagógica dos espaços de participação social e, paradoxalmente, os desafios da mobilização e da construção dialógica em tempos de polarização extrema. No entanto, esse é um dos caminhos para desconstruir as estruturas de poder historicamente arraigadas e verticalizadas. Por isso, para fortalecer os espaços participativos, devemos ocupá-los.
Um dos exemplos de instituições participativas que a sociedade precisa ocupar sempre, e cada vez mais, são as Conferências Nacionais. São inúmeros os debates acerca dos processos conferenciais, sobretudo no que concerne à participação da população com propostas, avaliações, críticas e reclamações. Entretanto, o caráter de mão dupla das Conferências ainda é pouco discutido, considerando que esse espaço vai além da promoção de debates e da escuta das demandas populares: exige também que o poder público preste contas, informe sobre ações implementadas, oriente sobre aspectos técnicos das propostas em discussão e justifique decisões. Como costumava dizer a presidenta Dilma Rousseff: “Conferência é para conferir”. Essa devolutiva é central para garantir a efetividade das políticas públicas, mas é também uma tarefa complexa nessa arena de diálogo entre o governo brasileiro e a população. Em tempos de internet e de fake news, esses encontros são ainda mais importantes, porque disseminam informação segura e fortalecem a confiança nas instituições do país.
Historicamente, as Conferências Nacionais têm sido espaços de transformação social. A 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), por exemplo, foi decisiva para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Já em 2005, a I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial subsidiou a elaboração do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, demonstrando como a mobilização popular pode influenciar políticas estruturantes. Contudo, o ciclo da participação só se completa quando há transparência na resposta do Estado: se o cidadão apresenta propostas, o governo deve explicar como elas foram (ou não) incorporadas, quais obstáculos enfrentou e quais resultados foram alcançados. Devemos reconhecer que essa etapa ainda é negligenciada, pois as Conferências são tratadas majoritariamente como instâncias consultivas, sem um retorno sistemático à sociedade, que costuma limitar-se, muitas vezes, à publicação do relatório final do processo conferencial. Quando isso ocorre, perde-se a oportunidade de fortalecer o controle social e aprofundar a governança democrática com o diálogo permanente. A devolutiva não deve se limitar ao relatório da conferência — que é de grande relevância, mas cujo caráter técnico o torna um produto inacessível para uma parcela significativa da população. Deve, sim, basear-se em uma comunicação contínua e acessível, que permita ao cidadão entender e avaliar as ações governamentais entre as edições de uma Conferência Nacional. Isso significa materializar a ideia de que um processo conferencial só se encerra a partir da convocação da Conferência seguinte e que cada Conferência deveria ser iniciada com o balanço da edição anterior.
Em um contexto marcado pela desinformação e pela crise de confiança nas instituições, as Conferências podem ser antídotos poderosos. Quando o governo presta contas de forma aberta, didática e horizontal, enfraquecem-se os discursos que distorcem a realidade, ao mesmo tempo em que se fortalece a cidadania ativa. Isso porque, quando as pessoas se sentem parte do processo, reconhecendo que suas demandas foram consideradas — ainda que não tenham sido integralmente atendidas —, concretiza-se a via de mão dupla entre o governo federal e todos os brasileiros. Além disso, a devolutiva deve ser contínua, por meio das plataformas digitais, audiências públicas e publicação de relatórios periódicos. Ou seja, são inúmeras as ferramentas que podem manter o diálogo vivo, como a possibilidade de informar sobre as políticas públicas, explicar as ações, os serviços e os programas a partir da presença de diversos órgãos de cada ministério na etapa nacional das suas conferências, a exemplo do que acontece nas Conferências de Saúde e Assistência Social.
As Conferências Nacionais só cumprem plenamente seu papel quando funcionam como uma estrada em que o tráfego flui nos dois sentidos, sem separação física entre eles. Essa metáfora, usada para dizer que alguma coisa vai, mas também volta, significa que a sociedade fala, o governo ouve, mas também responde. Sem essa reciprocidade, o processo participativo perde força. É preciso, portanto, fortalecer os mecanismos de prestação de contas, assegurando que a participação popular não seja simbólica, mas um instrumento real de transformação social. Em um país marcado por desigualdades e problemas complexos, as Conferências Nacionais — como a etapa nacional da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (5ª Conapir), que ocorrerá entre os dias 15 e 19 de setembro, com o tema “Igualdade e Democracia: Reparação e Justiça Racial” — são mais do que espaços de debate: são instâncias repletas de oportunidades para construir políticas públicas mais justas e eficientes. Por isso, o processo conferencial não termina quando as pessoas delegadas deixam o plenário. Pelo contrário: é ali que começa o desafio de mostrar à população que sua voz foi, de fato, ouvida.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

