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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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O casamento de Julian Assange

"Até naquele dia as autoridades continuaram com a sua implacável campanha de crueldade contra Julian", escreve Chris Hedges, que foi convidado para o casamento

(Foto: REUTERS/Peter Nicholls)
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Por Chris Hedges

(Publicado no site The Chris Hedges Report, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247.)

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Estou em frente ao portão da Prisão de Belmarsh, uma penitenciária de alta segurança na região sudeste de Londres, com Craig Murray, que foi o Embaixador Britânico no Uzbequistão até ser demitido por expor as prisões clandestinas e centros de tortura (black sites) de CIA naquele país. Dentro da prisão, Julian Assange e Stella Morris estão se casando. Craig e eu estávamos na lista de seis visitantes convidados para o casamento, porém as autoridades da prisão, num exemplo do sadismo institucional que caracteriza todas as prisões, nos negaram a entrada. Craig, que deveria ter sido uma das duas testemunhas, foi informado que ele não poderia entrar porque “colocaria em perigo a segurança da prisão.”

Craig veio de Edimburgo (Escócia) de trem. Eu voei de New York. Pelo menos pudemos ficar na entrada da prisão com uns 150 apoiadores de Assange. Vestindo o traje de gala escocês – e um kilt (saia tradicional escocesa) que ele confessou ter tido que mandar expandir a largura a cada tantos anos para acomodar a sua cintura em expansão – fez uma declaração de moda e, talvez, um argumento sobre a independência escocesa. Ele foi superado por Stella, que trajava um vestido nupcial solto em lilás-gelo, um espartilho com uma cintura de plástico para ela poder passar pelos quatro detectores de metal, e um véu desenhado e doado pelos designers de moda Vivienne Westwood e Andreas Kronthaler.  

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“Isto é uma parte da tortura mental vigente que, até neste mais feliz dos dias, eles tramam contra os convidados na sua lista de convidados, só para mexer com ele, só para tentar fazer com que as coisas sejam tão desagradáveis quanto eles possam torná-las”, lamenta Craig. “Não deveríamos nos surpreender. Isso faz parte da crueldade desnecessária com a qual ele está sendo tratado desde o início. Por que raios ele está em uma prisão de segurança máxima construída para hospedar terroristas? Eu me divirto bastante com a explicação de que eu coloco em perigo a segurança da prisão. Sinto-me lisonjeado com isso. Eu não consegui entender tudo isso até hoje, quando, obviamente, me ocorreu que eu pareço incrivelmente sexy na minha saia e que eles pensaram que pudesse provocar um tumulto na prisão.”

O dia está sendo agridoce. Talvez Julian nunca possa viver com a sua esposa e família. No entanto, esta é uma afirmação de amor e compromisso e esperança realizada numa pequena sala lateral, com cadeiras dobráveis e uma mesa de laminado. As autoridades da prisão negaram a Julian e Stella o uso de uma capela. A cerimônia foi testemunhada por seis membros da família, incluindo Julian os dois pequenos filhos de Julian e Stella – um dos quais adormeceu e o outro estava preocupado com um avião de papel e tentou ativar um dos alarmes. Dois guardas estavam postados na sala.

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Não houve uma comemoração. Não havia uma torta. A prisão negou o pedido de Julian e Stella de terem um fotógrafo presente. Um dos guardas tirou algumas fotos, mas as autoridades da prisão informaram a Julian e Stella de que estas não poderiam ser publicadas nas mídias sociais nem compartilhadas com o público. Permitiram a eles que se beijassem. Isso instigou o menino maior, Gabriel, a dizer – conforme a família me contou - “Oh, este foi um beijo desleixado”. Depois, o capelão católico – que teve a precaução de trazer uma toalha de mesa branca e velas – deu a eles a benção. Deram a Julian e Stella meia hora juntos num salão lotado de visitantes. E então, Julian – o prisioneiro A 9379Y – foi escoltado de volta à sua cela, sob o aplauso dos prisioneiros da sua ala.

“Foi um ato de desafio” - me disse Stella mais tarde sobre o casamento. “Pode se notar quanto eles (a prisão) o temiam.”

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A campanha para desumanizar Julian – quem, honrando as suas raízes escocesas, vestia uma saia (kilt) roxa e bege, junto com uma gravata roxa e um colete, também doados e desenhados por Westwood e Kronthaler – estende-se ao dia do seu casamento. Não resta dúvida que uma das razões pelas quais Craig – cuja cobertura dos procedimentos do tribunal foi obstinada e brilhante – e eu não estivéssemos no casamento é porque as autoridades da prisão não queriam que nós escrevêssemos sobre o casamento – e eles deveriam ter sabido que nós o faríamos, estivéssemos ou não na prisão.

“Eles têm maldade”, diz Craig. “Eles têm a capacidade de empregar a violência do estado. Eles têm o poder arbitrário que podem usar para tomar decisões cruéis e nojentas só por fazê-lo, só para mostrar que podem; da nossa parte, nós só temos paz e amor e a verdade. Ao fim e ao cabo, estes valores são muito mais importantes”.

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Julian é visado porque a sua organização Wikileaks publicou os Registros da Guerra do Iraque em outubro de 2010 – os quais documentaram os numerosos crimes de guerra dos EUA -, incluindo as imagens mostradas no vídeo 'Collateral Murder' (Assassinato Colateral) do fuzilamento de dois jornalistas da agência Reuters e 10 outros civis desarmados. Ele é visado porque expôs a matança de cerca de 700 civis que se aproximaram demais de postos de controle dos EUA.

Ele é visado porque tornou públicos os instrumentos usados pela CIA conhecidos como 'Vault 7' (Cofre 7). Vault 7 expôs que a CIA é capaz de invadir carros, Tvs “inteligentes” (digitais), navegadores de internet e os sistemas operacionais da maioria dos 'smart phones' (celulares), bem como os sistemas operacionais Microsoft Windows, macOS e Linux.

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Ele é visado porque documentou as mais de 15.000 mortes não-declaradas de civis iraquianos, a tortura e abuso de uns 800 homens e meninos de idades entre 14 e 89 anos, em Guantánamo.

Ele foi visado porque nos mostrou que, em 2009, Hillary Clinton ordenou aos diplomatas estadunidenses que espionassem o Secretário-Geral da ON, Ban Ki Moon, e outros representantes da China, França, Rússia e o Reino Unido na ONU – uma espionagem que inclui a obtenção do DNA (código genético), varredura da íris dos olhos, impressões digitais e senhas pessoais - como parte de um padrão de longa data de vigilância ilegal dos EUA que incluiu a escuta telefônica do Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, nas semanas precedentes à invasão do Iraque liderada pelos EUA em 2003.

Ele é visado porque expôs que Barak Obama, Hillary Clinton e a CIA orquestraram o golpe militar em Honduras em 2009 que derrubou o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya, substituindo-o por um regime militar assassino e corrupto.

Ele é visado porque publicou documentos que revelaram que os EUA lançaram secretamente ataques de mísseis, bombas e drones no Iêmen, matando dezenas de pessoas.

Ele é visado porque tornou público os US$ 657 mil pagos à Hillary Clinton pela Goldman Sachs para dar palestras e a sua garantia privada aos líderes corporativos de que ela defenderia as suas demandas, ao mesmo tempo em que prometia ao público a regulação e reforma financeira.

Ele é visado porque revelou a campanha interna para desacreditar e destruir o líder do Partido Trabalhista (Labour) Britânico Jeremy Corbin, feita por membros do seu próprio partido.

Ele é culpado somente por estas verdades.

O governo Biden está determinado a extraditar Julian e acusá-lo de 17 crimes previstos no Ato de Espionagem (Espionage Act) dos EUA e um crime de hacking de um computador governamental – o que pode levá-lo à prisão por 175 anos.

Eu presenciei alguns dos procedimentos nos tribunais de Londres. Foi uma farsa judicial – especialmente porque a empresa espanhola de segurança UC Global e a Embaixada do Equador, onde Julian tomou refúgio durante sete anos, gravou todas as conversas de Julian com os seus advogados e as entregou à CIA. Este fato sozinho deveria invalidar o julgamento. Porém, também há o fato indiscutível de que Julian jamais cometeu um crime.

Julian não é um cidadão estadunidense. Wikileaks não é uma publicação baseada nos EUA. Mesmo assim, ele é indiciado por traição segundo o 'US Espionage Act' (Ato de Espionagem dos EUA). Esta é uma pantomima judicial, um julgamento-show no qual o estado de direito é sabotado por advogados vestindo perucas de crinas de cavalo e por grandes inquisidores como Gordon Kromberg – o advogado-assistente dos EUA pelo Distrito Leste do estado da Virginia – que trata de casos de alto perfil de terrorismo e segurança nacional. Kromberg tem desprezo declarado contra muçulmanos, contra o islamismo e qualquer um que desafie o estado. Ele denunciou aquilo que chama de “islamização do sistema de justiça estadunidense”.

Kromberg supervisionou a perseguição de nove anos do ativista e acadêmico palestino Dr. Sami Al-Arian e houve um momento no qual ele recusou o pedido de postergação de uma data no tribunal durante o feriado religioso de Ramadan. “Eles podem se matar durante Ramadan, portanto eles podem apresentar-se ao tribunal (grand jury) [durante o Ramadan]. A única coisa que eles não podem fazer é comer antes do pôr do sol” - disse Kromberg durante uma conversa em 2006, segundo uma declaração juramentada apresentada por um dos advogados de Arian, Jack Fernandez. Kromberg criticou Daniel Hale – um ex-analista da Força Aérea dos EUA que foi condenado a 45 meses de prisão por vazar informações sobre a matança de civis feita por drones -, alegando que Hale não havia contribuído para o debate público, porém havia “colocado em perigo as pessoas que estão na luta”. Ele ordenou que Chelsea Manning fosse aprisionada depois de ela recusar-se a testemunhar frente a um tribunal (grand jury) que investigava o Wikileaks. Manning tentou cometer suicídio em março de 2020, quando estava detida numa prisão na Virginia.

A perversão da lei para todos nós que acompanhamos o caso de Julian é arrepiante. Ela pressagia a emergência de um totalitarismo corporativo global, no qual a lei é uma ferramenta de opressão, e não de justiça.

O governo dos EUA venceu com sucesso um apelo à uma decisão de um tribunal inferior do Reino Unido que negou o pedido de extradição de Assange porque a sua fragilidade psicológica faz dele um risco de suicídio e as condições sob as quais ele seria detido no sistema de prisões estadunidenses enquanto aguardaria julgamento são desumanas.

Julian apresentou recurso, num esforço para restabelecer a decisão original. O seu apelo foi negado. A Secretária do Interior (Home Secretary) do Reino Unido, Priti Patel, deverá decidir dentro em breve se ele será extraditado. Caso ela decida extraditar Julian, ele poderá voltar à corte inferior para apelar contra os pontos nos quais ele é considerado como culpado. Caso a Alta Corte britânica decida a seu favor, os EUA podem apelar aquela decisão na Corte Suprema do Reino Unido. Esta dança legal provavelmente durará um ano. Caso a Alta Corte rejeite o recurso de Julian, ele poderá ser extraditado em poucas semanas.

Julian tem sido observado a caminhar obcessivamente na sua cela, dando socos na sua face, batendo a sua cabeça contra a parede, chamando repetidamente a linha telefônica de emergência dos samaritanos porque ele estava pensando “mil vezes por dia” em cometer suicídio e estava alucinando. Foi encontrada uma lâmina de barbear sob as suas meias. Ele declarou a Nils Melzer – o relator especial da ONU sobre tortura, o qual levou médicos da ONU para examinar Julian – que, caso ele fosse extraditado, ele se mataria. Ele teve um AVC durante o seu julgamento em outubro passado. Ele está tomando remédios antidepressivos e contra AVCs e o antipsicótico Quetiapine. Ele está esquelético, a sua postura é ruim a sua pele está acinzentada. Ele passou meses na ala médica da prisão. Como Melzer concluiu no seu relatório para a ONU, Julian está sendo metódica e sistematicamente torturado. A meta dos governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha é transformar a obliteração psicológica, e talvez física, de Julian em um aviso arrepiante para qualquer um que também possa tentar jogar uma luz sobre o funcionamento interno do poder.

Eu gosto de Julian e o admiro. Ele é intelectualmente curioso, incrivelmente corajoso, engraçado e – pelo menos quando estive com ele na embaixada equatoriana em Londres – ele é charmosamente pueril. Ele poderia facilmente ter usado as suas precoces habilidades em computação para construir uma vida confortável para si mesmo, trabalhando para grandes empresas financeiras ou para agências de segurança nacional. Ao invés disso, ele escolheu usar as suas habilidades para benefício do público, a serviço da verdade. Ele proveu o corpo mais importante de informações da nossa geração sobre crimes de guerra, mentiras, corrupção e cinismo que definem as elites dominantes. As suas informações rasgaram o véu em volta dos centros de poder em todo o mundo, iniciando movimentos e protestos populares desde a Tunísia até o Haiti.

Caso Assange seja extraditado e condenado por publicar materiais classificados (secretos), isso estabelecerá um precedente legal que acabará efetivamente com as reportagens sobre segurança nacional, permitindo ao governo indiciar sob o Espionage Act (Ato de Espionagem dos EUA) qualquer repórter [de qualquer nacionalidade] que possua documentos classificados e qualquer denunciante que vaze informações classificadas. O funcionamento interno do poder será encoberto na escuridão, com consequências muito sinistras para a liberdade de imprensa e a democracia.

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Já é noite. Estou na festa de casamento na casa de Stella, com a mãe dela, o seu irmão, o pai de Julian e o irmão dele, bem como os dois pequenos filhos de Julian e Stella.

“Ele foi desaparecido”, diz Stella suavemente. “As únicas fotos dele que apareceram desde 2019 foram tiradas ilegalmente no tribunal; todo o resto são ilustrações do tribunal e imagens dentro da caminhonete da prisão em 2019.”

“Sair da prisão a[pós o casamento] foi realmente chocante.”, ela adiciona.

Stella e Julian passaram anos tentando casar-se. Primeiro, eles pediram à embaixada equatoriana que os casasse, porém Julian não era cidadão equatoriano. Uma vez tendo recebido a cidadania equatoriana, o novo governo em Quito tornou-se hostil. Stella e Julian começaram a fazer lobby na prisão pelo direito de se casarem em 2020, porém as autoridades da prisão não responderam aos seus pedidos até serem ameaçados por um processo judicial.

Stella traz o seu vestido de cetim do casamento, com as suas mangas três-quartos e o seu véu, para nos deixar examiná-los. Na aba interna do vestido, Vivienne Westwood escreveu: “Para mim, Vivienne, Julian é uma alma pura e um lutador pela liberdade. Todo o meu amor para a família, Julian, Stella, Max e Gabriel. Possa a sagrada força da vida abençoar o vosso casamento.” O véu tinha bordado por dentro palavras da família e amigos. Julian escolheu “Amor Duradouro”. Ardente. Ilimitado. Jubiloso. Resiliente. Incandescente. Selvagem. Valente. Resoluto. Afetuoso. Teimoso. Tumultuoso. Paciente. Enternecido. Destemido. Eterno.

John Shipton, pai de Julian, me diz: “Para que o amor deles tenha crescido e florescido nestas terríveis circunstâncias de perseguição incessante e tortura psicológica, o amor transcende as circunstâncias.”

Ele volta-se para os seus dois pequenos netos.

“Como você pode ver, [este amor] produziu duas crianças alegres” - diz ele.

Já é tarde. Stella corta o seu bolo de casamento na mesa de madeira da cozinha. A camada de cima é de limão. O fundo é de amora. Comemos em silêncio.

Rezem por Julian. Rezem por Stella. Rezem pelos seus filhos. Rezem por todos nós.

Chris Hedge

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