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Aderbal Freire-Filho

Diretor e autor teatral, ator e apresentador

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O Congresso volta a 1891

Nesse momento, quanto são votadas as ditas reformas trabalhistas, nada seria mais recomendável para a maioria de deputados e senadores brasileiros do que as Pílulas do Dr. Cypriano Santos, que combatem as perturbações do fígado e do baço e evitam as recaídas

Nesse momento, quanto são votadas as ditas reformas trabalhistas, nada seria mais recomendável para a maioria de deputados e senadores brasileiros do que as Pílulas do Dr. Cypriano Santos, que combatem as perturbações do fígado e do baço e evitam as recaídas (Foto: Aderbal Freire-Filho)
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Nesse momento, quanto são votadas as ditas reformas trabalhistas, nada seria mais recomendável para a maioria de deputados e senadores brasileiros do que as Pílulas do Dr. Cypriano Santos, que combatem as perturbações do fígado e do baço e evitam as recaídas. Ou, conforme a grafia do anuncio feito pela Pharmacia e Drogaria do Povo, na época correspondente ao lançamento do remédio e a sociedade em que parecem viver os deputados e senadores de hoje, evitam as “recahidas”.

O mal é grave e altamente contagioso. Um sintoma claro dessa “recahida” de deputados e senadores é uma compulsão de volta aos tempos da senzala, que ameaça a sociedade com a abolição da abolição da escravatura. Para piorar, o próprio vírus é anunciado como medicamento – em doses altíssimas, que não permitem falar em vacina – com uma bula que apenas mascara a doença mudando seu nome verdadeiro, abolição da abolição da escravatura, por uma terminologia médica dita neoliberal.

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Na impossibilidade de encontrar no mercado as Pílulas do Dr. Cypriano Santos, o jeito é desprezar a medicina e receitar para os deputados e senadores enfermos um tratamento alternativo. Não falo em curas espirituais, mezinhas caseiras, hipnose, etc. Proponho continuar no campo da ciência: substituo a Medicina pela História.

Ofereço uma dose de História do Brasil indicada especialmente, pela forma e conteúdo, para esta espécie de “recahida”.

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Estamos no começo da República, corre o ano de 1891, é a Primeira Legislatura da Congresso do Estado do Pará. Os deputados se reúnem no dia 19 de novembro do dito ano de 1891, para discutir o Projeto n. 5, de autoria do Deputado Manoel Vianna Coutinho, “estabelecendo 8 horas para o serviço operário”. Os primeiros deputados republicanos de uma província do norte do Brasil vão discutir um dos pontos básicos da questão trabalho digno X escravidão, isto é, a jornada de trabalho. Lembro: a escravidão acabara apenas 3 anos antes.

O deputado Vianna Coutinho, autor do projeto de lei que fixa em oito horas a jornada diária de trabalho, é operário. Sei que muita gente vai se surpreender: um operário eleito deputado ainda no tempo das Pílulas do Dr. Cypriano Santos? Um operário, eleito.

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O deputado Ignácio Coutinho abre a discussão.

(Transcrevo dos anais da Câmara dos Deputados do Pará mantendo a ortografia da época, para ver se assim – o contraste entre a antiguidade da ortografia e a pretendida “novidade” dos argumentos dos enfermos de 2017 – o remédio faz mais efeito).

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“O sr. Ignacio Cunha

Senhor Presidente, entre nós os contractos que ligam o contractante ao contractado são, na sua quasi totalidade, verbaes, não passam de mero acordo entre o operario e o patrão, sem coacção, sem violência, que torne por tal fórma sujeito o operario, que este se veja obrigado a trabalhar mais do que comportam as suas forças. Vamos ser importunos, procurando intervir no trabalho alheio. Isso é uma violência, é um absurdo. Além disso, trabalhos ha de tal natureza, que, depois de começados, não podem ser interrompidos. N’uma fundição, por exemplo, quando promptos ou accesos os fornos, com o material a fundir, não se pode apagar, sob pena de completa perda de trabalho e de material; e a hora fatal da lei soou, o operario despreza o serviço mesmo contra sua vontade, é obrigado a não mais trabalhar, apagam-se os fornos, o metal já em fuzão esfria, a perda é enorme e a benéfica lei não vae retribuir o capital empregado inutilmente.

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O sr. Marques de Carvalho

Isso não. O operário pode ser substituído por outro.

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O sr. Ignacio Cunha

Nem sempre, pois cada operário tem o seu segredo, tem o seu modo particular, o seu processo especial. Havemos de convir em que a medida contida no projecto é prejudicial à classe operária, é attentatoria da sua liberdade, é um presente grego que ella hade necessariamente repellir.

O sr. Marques de Carvalho

Sr. Presidente, sem concordar totalmente com as opiniões do illustre colega que me precedeu, estou entretanto de acordo com as suas idéas geraes. Voto contra o projecto, porque apoial-o é sanccionar absurdo; abuso que ultrapassa os limites do justo para coarctar a liberdade individual. As classes operarias, exactamente como todas as outras que formam o conjuncto social, devem ser livres, aptas a girar sem peias nas orbitas das suas necessidades, de suas conveniencias. Os operários necessitam de exercer desafogadamente suas actividades, de accordo com as forças de que dispuserem e com os recursos de que necessitarem. Não são só os operários que trabalham: o sábio, o industrial, o chimico, o astronomo, o comerciante, etc, etc, gastam quotidianamente muitas horas em aturadas e esforçadas investigações, em longos trabalhos de gabinete e de officina. Appéllo para o patriotismo dos srs. Deputados: em beneficio das classe operárias tão necessitadas de toda a liberdade para a obtenção dos seus recursos de subsistência, peço a rejeição do projecto n. 5.

O sr. Vianna Coutinho (autor do projecto)

Cada vez que o sól camba para o occaso , mais hypocrisia se revela. Hoje, como hontem, os homens são os mesmos. Hontem velhos carcomidos e estragados, hontem no regime decaido os antigos aristocratas massacrarão o povo, hoje, em pleno domínio da liberdade, os pseudo democratas sugam-lhe o sangue, roubam-lhe a existência, deturpam-lhe os caracteres, aviltam-lhe os sentimentos e negam-lhe o direito. O povo é sempre o mesmo. “O povo é sempre a besta”!!! Operario como sou e conhecedor dos soffrimentos de meus colegas, não viria nunca propor n’esta casa uma medida que coarctasse a liberdade d’elles. Muita pressão se exerce já sobre eles, obrigando-os, pela necessidade, a um trabalho penoso e excessivo. Aqui onde me vêdes, não ha muito, fui victima de uma dessas prepotências sem nome, sendo até ameaçado pela polícia, por não me querer sujeitar mais ao trabalho diurno e nocturno pelo mesmo insignificante salario a que eu me sujeitava pela necessidade de ganhar a vida. Quem tem passado o dia inteiro em cima de um andaime, sob um sól ardente como o nosso, não pode ter disposição para cultivar o espírito. Sem o regulamento cuja decretação eu peço, em nome da classe operaria, será impossível que o operario se instrua pois a isso se oppora a ganancia dos patrões. 

O sr. Diogo Holanda (não devolveu o seu discurso) combate o projecto como perigoso aos interesses da classe operaria e attentatorio da liberdade individual.

O sr. Vianna Coutinho – Sr. Presidente, não me causa espanto ver o vampiro soprar com suas aveludadas azas a victima em que vai cravar os dentes amolados, para sugar-lhe o sangue. Sejamos menos pretenciosos, muito patriotas e mais cumpridores dos nossos deveres. Sr. Presidente, sou operário, como tal muito hei soffrido da soberba e do arbítrio dos patrões ambiciosos; como tal, conheço de perto as necessidades da classe a que me orgulho de pertencer, embora seja ella dos parias. Sinto os seus vexames, conheço-lhe as precisões, d’ahi a convicção da efficácia da medida que o meu projecto encerra.

O sr. Ferreira Teixeira – Sr. Presidente, se o operario para viver tem necessidade de trabalhar mais de oito horas, como se pretende reduzir-lhe o tempo de serviço, quando este é insuficiente para conseguir os meios de subsistência? Sr. Presidente, os economistas condenam projectos d’esta natureza. A vista portanto dos argumentos adduzidos não posso deixar de votar contra o projecto que na aparência protege a classe operária mas em substancia ataca a sua liberdade individual.

Encerrada a discussão e submettido o projecto a votos, é regeitado.”

Infelizmente, o operário Manoel Vianna Coutinho, meu bisavô, não viveu o suficiente para ver a jornada de oito horas ser finalmente estabelecida. Felizmente, não viveu mais 126 anos para ver que ela seria novamente “regeitada” por futuros colegas seus. 

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