O delírio das incertezas
Do negacionismo científico à xenofobia, o planeta adoece de certezas frágeis e ilusões digitais. Pensar por si mesmo virou ato de resistência.
Vivemos um tempo em que o diferente se tornou ameaça. O plural, que deveria ser celebração da inteligência humana, virou sinônimo de ofensa. Há quem reaja à divergência como quem ouve um ruído insuportável — não para escutar, mas para silenciar. É nesse ponto que começa o deserto das ideias.
Respeitar a diversidade — de pensamento, de crença, de ideologia, de nacionalidade, de cultura — não é um gesto de condescendência, mas um ato de lucidez. O mundo não foi moldado para caber num único ponto de vista.
A natureza ensina, em silêncio, que a força da vida está justamente na diferença.
Há sabedoria em quem escuta o que o contradiz. Quando alguém pensa diferente de você, o único direito legítimo é o de argumentar. Nada além disso. Argumentar é ato civilizatório, uma ponte entre ilhas. Ofender, agredir e odiar são sintomas de mentes que não suportam o próprio espelho.
Quem não suporta o pensamento alheio teme ver o próprio erro refletido. É mais fácil querer que o mundo mude de lugar do que admitir a necessidade de mudança em si mesmo. Por isso, tantos se comportam como imperadores sem império, impondo verdades a quem apenas tenta existir.
A mente infantilizada acredita que a vida deve confirmar suas certezas. A madura sabe que viver é desapegar-se delas.
A diversidade é escola de humildade — ensina que não precisamos vencer debates, mas compreender que a razão é uma moradora itinerante.
Como psicanalista, não acho que o mundo esteja mal frequentado. O que vejo é um retrocesso civilizatório. Tijolo a tijolo, construímos valores de convivência e razão. Agora, muitos os renegam, trocando empatia por fúria, escuta por grito, reflexão por certezas que se autoproclamam eternas.
De 2016 a 2025, assisti com espanto à volta de ideias autoritárias, disfarçadas de soluções simples. Vi pessoas abrirem mão do livre-arbítrio, permitindo que outros pensassem por elas. O desconforto diante da diferença transformou-se em ódio. Famílias, antes inteiras, se fragmentaram em tribos que se enfrentam.
Essa nova ordem emocional, feita de medo e intolerância, espalhou uma paranoia planetária. O outro se tornou ameaça. Surgiu a xenofobia — medo e rejeição do estrangeiro, real ou simbólico —, expressão do pavor de conviver com o que não espelha nossa imagem.
O delírio das incertezas passou a enfermar as mentes cansadas de pensar por si mesmas.
O negacionismo científico virou epidemia moral. Opinião se confundiu com conhecimento; crença, com evidência. A dúvida, antes semente da razão, foi transformada em combustível da histeria coletiva.
Se o Iluminismo — movimento do século XVIII — foi o nascimento da razão moderna, suas luzes parecem agora se apagar. Boa parte da humanidade retorna voluntariamente à caverna de Platão, fascinada pelas sombras digitais que tremulam nas telas do mundo virtual.
As redes tornaram-se o novo oráculo. Ali, as sombras são mais confortáveis que a luz. As mentiras circulam mais depressa que o pensamento, e as convicções se tornaram trincheiras. A humanidade assiste, mesmerizada, ao eclipse do discernimento.
Enquanto isso, o fanatismo religioso corrói o que há de sagrado na fé: a liberdade de crer e o respeito ao diferente. O sentido da vida foi trocado por acumulação de riqueza, e a realidade, por um simulacro de si mesma.
Vivemos num palco de aparências, onde a autenticidade virou artigo de luxo. O mundo virtual nos permite ser quem gostaríamos de ter sido, não quem realmente somos.
A verdade perdeu a voz, e o ego assumiu o microfone.
Conviver com a diversidade é reconhecer que ninguém tem o monopólio da verdade. Respeitar é compreender que a humanidade é um coral de dissonâncias. E que o respeito — mais do que virtude — é o idioma que nos impede de voltarmos, cegos, à escuridão da caverna.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
