Francisco Attié avatar

Francisco Attié

Escritor e jornalista. Seus textos e fotos são publicados na revista GQ e no jornal Gothamist em Nova Iorque

4 artigos

HOME > blog

O desmonte político universal

A última boa nova dos caras é… Golpe! Sim, mais um. Não tem jeito, eles são muito inventivos

Palácio do Planalto e Congresso Nacional, em Brasília - 18/04/2013 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

A última boa nova dos caras é… Golpe! Sim, mais um. Não tem jeito, eles são muito inventivos. É golpe militar, golpe parlamentar, golpe corrupção. Se tivesse um empresário sagaz na esquerda tinha dado um jeito de fazer o trademark da palavra “golpe.” Aí todo novo projeto de governo da direita o cara ia lucrar um pouquinho. E se fossemos realmente espertos, colocaríamos uma parte desse dinheiro em um fundo, daqueles bem simplões mesmo, só para bater a inflação, sabe? Para manter o dinheiro valendo algo. Quiçá atrelássemos esse fundo ao dólar — moeda forte, que fala outras línguas. Aí já viu, né. Toda vez que os caras lá no congresso ou no senado ou no exército ou em algum ministério do centrão ou em alguma fazenda onde ainda reina um processo pré-Lei Áurea, toda vez que em algum cantinho de Brasil os caras bolassem a boa nova do velho golpe (sei lá, tipo um semi-presidencialismo, ou de acabar com a lei da ficha limpa), esse dinheiro cai no fundo, e a esquerda usa essa quantia para financiar algum programa de cunho autoral. E não para ficar simplesmente rebatendo a agenda protocolar de alarmismo universal da direita. Criamos aí uma renda passiva, como chamam os especialistas. Que nos libertaria para nossos próprios passatempos, nossos hobbies, para ajudar o Brasil brasileiro, e não aquele estadunidense, trump-bolsonarista, colonial, escravocrata, do minério e das milícias, aquele velho Brasil para sempre vendido às grandes elites, aos senhores da Havan e das Americanas, aos latifundiários, às famílias que vivem de pensão militar, pensão prefeitura, ou pensão nasci-torto-pensando-que-sou-alemão-então-é-melhor-eu-me-tornar-nazista-de-uma-vez-e-poupar-meus-professores-de-história-porque-eu-conheço-a-verdadeira-história-não-essa-história-nutella-leite-com-pêra-contada-por-bicho-grilo-tentando-pregar-kumbaya-eu-quero-é-guerra-e-guerra-faz-bem-pros-cofres-do-meu-patrão-bilionário-que-me-prometeu-subir-o-meu-sálario-quando-ele-alcançar-o-terceiro-bilhão-pra-daí-eu-conseguir-arcar-com-o-novo-dízimo-que-o-pastor-irmão-do-meu-patrão-aumentou-mês-passado-porque-senão-a-igreja-fecha-não-tá-fácil-pra-ninguém-não-meu-irmão (não conhecem essa pensão ainda? Ela é nova por aqui mesmo. Dizem que foi importada), pensão para quem prega desinformação, pensão para quem fábrica o boné mais descolado, pensão para quem quer, menos para quem precisa: Brasil, pátria derrotista, avante! 

Não deu, cara. Caí no alarmismo da direita. Esses dias está muito difícil manter a cabeça boa. Cada notícia triste sobre o Brasil (ou sobre os EUA), cada tragédia que é comemorada por um grupo seleto da população mundial, e cada dia tem mais, acaba com a gente. Mas se engana quem não vê essa rede de notícias como o projeto político que ela é. Essa semana li um artigo que discutia exatamente isso. Como essa política de “shock and awe” do jovem governo Trump, de institucionalizar as maiores barbáries em um curtíssimo período, aliada aos feeds parceiros das big techs, que aumentam a repercussão de posts sobre tragédia e escondem aquele conteúdo mais tranquilo do dia-a-dia (cadê minhas páginas de futebol, Zuckerberg?), não passa de um movimento para chocar e atrasar o combate da esquerda. Afinal, como pode lutar aquele que está desnorteado? E não é coincidência esse notado aumento de notícias sobre golpe (fantasiado de processo político legítimo) aqui no Brasil também. Quando os deputados federais Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) e Lafayette Andrada (Republicanos-MG), protocolam a PEC 2/25 para tentar transformar o Brasil em um sistema “semipresidencialista,” ou quando o presidente da câmara, Hugo Motta (Republicano-PB), dá a entender que oito anos fora da política é tempo demais para quem atentou contra o estado democrático de direito, ou quando o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) viraliza com um vídeo de fake news sobre Pix, ou debochando de um presidente que tenta combater a fome enquanto ele vota contra zerar os impostos da cesta básica, se engana quem pensa que isso ganha espaço midiático por coincidência. Chega um momento que fica até parecendo teoria de conspiração. Mas é exatamente esse o ponto da direita brasileira contemporânea: dessensibilizar o povo para o desgoverno que eles tanto pregam; tirar nossa esperança por completo. 

O ponto é, as coisas não estão tão ruins quanto alguns dão a parecer. Não me entenda mal, as coisas não estão boas. Mas nós estamos lutando contra um processo que tenta desestabilizar o Brasil desde 1964 (talvez desde 1500). A ditadura acabou só em nome, porque o projeto político da direita continua o mesmo. Seja na tentativa de exterminar os povos indígenas, ou de enfraquecer as leis trabalhistas, ou de usurpar o cargo de presidente da república (por assassinato ou PEC). A direita tem uma obsessão por golpe de estado, e lucra muito todas as vezes que acha um manejo legislativo para bolar um novo golpe. Por isso é tão importante que tenhamos espírito de vontade para continuar combatendo essa política de desmonte. E quando digo combater, não é simplesmente subir ao púlpito ou se levantar durante o plenário para dizer que não concorda com o que já aconteceu. Não é ficar esperando o próximo ataque para sair correndo atrás como cachorro perseguindo ambulância, e ver se dá sorte de parar a bola em cima da linha do apocalipse. Não, a esquerda tem que ser ativa. Deve propor leis para responsabilizar financeiramente as elites que financiam golpes, como o “PL Véio da Havan,” apresentado pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP). Deve lutar para derrubar o nosso ainda vigente sistema escravocrata, tão claramente exemplificado pela escala 6x1, como busca a deputada Erika Hilton (PSOL-SP). Deve enfrentar os golpistas diretamente, como faz a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), ao buscar a cassação do mandato da deputada Rosa Zambelli (PL-SP), vulga pistoleira, e daqueles apologistas do nazismo que ganharam seus próprios mandatos ao atrelarem suas carroças à antiquada carruagem de fake news da madame. A esquerda deve ir à rua, deve protestar na Avenida Paulista, ou em Copacabana, ou no Shopping da Bahia, ou em frente a tantos outros símbolos de status pelo Brasil à fora. Por que se não incomodarmos os tais rentistas, pensionistas, bilionários onde o dinheiro deles corre, não vamos incomodar ninguém. Por que quando eles protestam, seja em pessoa ou pelos jornais com ações na bolsa, eles sempre capitalizam sobre suas manifestações. E esse dinheiro que parece bobo, que ninguém nem vê quando é transferido por Pix acima de cinco mil reais, de pouco em pouco enche o cofre das pessoas certas, que deixem o pau comer solto, e autorizam o desmonte social como se fosse ordem de demissão em massa dentro da empresa deles. 

Se não vamos ficando por aqui. Nosso projeto de Brasil, por mais desconexo que se mostre ser às vezes, vai ser escanteado em prol de uma nova ditadura. Essa cova eles já cavaram para nós faz tempo. Dia-a-dia nós lutamos para sair dela. Mas esse processo é longo, e temos que continuar lutando. Não podemos perder a motivação ao vermos que ainda tem muito buraco para tampar. E quando eles jogarem mais terra para tentar nos enterrar, temos que colocá-la debaixo de nossos pés para continuarmos a nos erguer desse buraco.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.