O despertar dos norte-americanos
Centenas de milhares tomam as ruas nos 50 estados, no maior levante cívico desde os anos 1960
Por anos, a imagem que o mundo via dos Estados Unidos era a de um país dividido, resignado, incapaz de reagir ao avanço autoritário de Donald Trump. Entre escândalos, ameaças à imprensa, manipulações políticas e discursos de ódio, a sociedade americana parecia paralisada. O mito da democracia exemplar convivia com a apatia. Mas, neste 18 de outubro de 2025, essa paralisia ruiu. As ruas falaram — e falaram alto. Milhões de norte-americanos marcharam em todos os cinquenta estados, em uma das maiores mobilizações cívicas da história do país.
Sob o lema “No Kings” (“Não há reis”), multidões exigiram a restauração dos limites democráticos e denunciaram o que veem como a tentativa de Trump de transformar a presidência em um trono.
A grandiosidade do movimento impressiona: mais de 2.600 protestos ocorreram simultaneamente em mais de 50 cidades dos Estados Unidos, organizados por grupos nacionais e locais e por coalizões progressistas conhecidas, incluindo Indivisible, 50501 e MoveOn. Tiveram adesão de sindicatos, movimentos estudantis, artistas, professores, religiosos e veteranos de guerra.
Não foi um ato isolado de ativistas de esquerda, mas um levante plural, nacional, com foco na defesa da Constituição e das liberdades civis. Em Washington, a Avenida Pensilvânia — símbolo do poder federal — foi tomada por um mar de cartazes. Em Nova York, marchas desceram a Quinta Avenida em direção à Trump Tower, onde faixas proclamavam: “We the People say No Kings”. “No more Trump!” gritava a multidão enquanto agitava bandeiras americanas.
Em cidades menores, como Madison, Phoenix, Denver e Baton Rouge, o eco foi o mesmo: basta de abuso de poder, basta de ameaças às instituições, basta de autoritarismo disfarçado de patriotismo.
O estopim para esse levante foi a sucessão de atos presidenciais que consolidaram o estilo imperial do segundo mandato de Trump. Desde que reassumiu em janeiro, o presidente concentrou poder no Executivo, nomeou aliados militares para funções civis estratégicas, reduziu a autonomia de agências reguladoras, interveio no funcionamento de universidades da importância da Havard University, uma das melhores instituições de ensino e pesquisa do mundo.
A substituição do nome “Departamento de Defesa” por “Departamento de Guerra” — um gesto simbólico, mas revelador — marcou o tom de um governo que faz da força um instrumento político. Soma-se a isso o endurecimento da repressão a protestos locais, o estímulo a milícias armadas e a tentativa de enfraquecer a Suprema Corte. Tudo isso alimentou o sentimento de urgência que explodiu nas ruas neste outubro.
Os americanos demoraram, mas reagiram. Reagiram ao ver um presidente que se vangloria de ter encerrado “oito guerras” enquanto inicia novas ofensivas contra a própria sociedade. Reagiram à militarização da vida pública, à retórica de inimigos internos, à manipulação da fé e do medo. Reagiram à banalização da mentira e à transformação da democracia em espetáculo autoritário. E reagiram, sobretudo, à ideia de que poderiam viver sob um líder que se comporta como monarca absoluto — cercado de aduladores, blindado por fake news e sustentado por uma máquina de propaganda que distorce fatos e reescreve a história.
O lema “No Kings” é mais do que uma palavra de ordem: é uma retomada simbólica da fundação dos Estados Unidos. Quando os manifestantes proclamam que “não há reis”, evocam o mesmo espírito que, em 1776, levou os colonos a romper com o poder absoluto da coroa britânica. A mensagem é clara: o país nasceu de uma rebelião contra o autoritarismo e não aceitará vê-lo renascer sob outras bandeiras. Essa dimensão histórica explica a força emocional das manifestações. Não é apenas uma disputa política; é uma defesa da própria identidade americana, do mito fundacional de um povo livre que não se submete a tiranos.
As imagens vindas das ruas mostram um país que desperta. Em Los Angeles, artistas transformaram os muros em painéis com frases da Constituição. Em Boston, estudantes recitaram o preâmbulo — “We the People” — diante da antiga State House, marco histórico nacional. Em Atlanta, grupos religiosos rezaram publicamente pedindo “a volta da decência e da verdade”. E em Chicago, veteranos de guerra marcharam lado a lado com jovens de 20 anos, lembrando que “lutaram por liberdade, não por um culto à personalidade”. Em muitos lugares, as manifestações transcorreram de forma pacífica e festiva, como celebrações de resistência democrática. Mas a mensagem política era cortante: Trump ultrapassou o limite, e a sociedade civil não aceitará mais calada.
A amplitude e a diversidade dessas marchas são, por si só, um acontecimento político. Elas marcam o retorno da mobilização popular num país que há muito parecia anestesiado. Reuniram grupos que raramente atuam juntos — sindicatos, ONGs, associações religiosas, artistas e professores universitários — e, sobretudo, resgataram um sentimento esquecido: o de que democracia é participação, e não espetáculo. O movimento “No Kings” é também um reflexo de algo mais profundo: a percepção de que o sistema político falhou em conter o autoritarismo e que o dever de resistência recai, mais uma vez, sobre os cidadãos comuns.
Movimentos de tamanha grandeza só ocorreram nos Estados Unidos nos anos 1960, quando o povo americano foi às ruas principalmente devido à Guerra do Vietnã e ao movimento pelos direitos civis.
A reação da Casa Branca seguiu o script previsível. Trump acusou os manifestantes de “traidores” e “anarquistas”, minimizando o alcance do movimento e sugerindo, sem provas, que seria financiado por inimigos estrangeiros. Seus aliados republicanos ecoaram o discurso, chamando o protesto de “teatral” e “antiamericano”. Mas o impacto visual das multidões nas ruas foi devastador para o governo. Imagens de praças lotadas circularam em tempo real nas redes sociais e nas TVs do mundo inteiro. O país que exportou a ideia de democracia liberal agora é notícia por ter de defendê-la internamente.
A repercussão internacional foi imediata. Em Paris, Berlim e Londres, grupos solidários organizaram atos simbólicos diante das embaixadas dos Estados Unidos. Os principais jornais noticiaram expondo a contradição de Washington — a antiga guardiã da democracia agora precisa reaprender o que é ser uma república.
O que virá depois é incerto. As manifestações de outubro podem marcar o início de uma nova era de engajamento político ou se esgotar como um grito isolado. Tudo dependerá da capacidade de transformar essa energia em ação contínua: pressão sobre o Congresso, fortalecimento de instituições independentes, vigilância sobre abusos de poder do presidente estadunidense Donald Trump, e articulação internacional em defesa das liberdades civis. Mas o fato essencial é que algo se quebrou. O medo, a apatia e a resignação deram lugar à indignação organizada.
O dia 18 de outubro de 2025 será lembrado como o momento em que os americanos, finalmente, saíram às ruas para dizer “basta”. Não apenas contra um presidente, mas contra o modelo de poder que ele representa: o da mentira, da violência e da arrogância travestida de patriotismo. O mundo inteiro observou — e muitos, aliviados, respiraram. Porque, se até o berço do liberalismo precisou redescobrir a força das ruas, é sinal de que o autoritarismo já havia ido longe demais. E, talvez, este seja o verdadeiro legado do movimento “No Kings”: lembrar que nenhuma democracia é eterna, a menos que o povo esteja disposto a defendê-la.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

