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Cynara Menezes

Baiana de Ipiaú, formou-se em jornalismo pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e já percorreu as redações de vários veículos de imprensa, como Jornal da Bahia, Jornal de Brasília, Folha de S.Paulo, Estadão, revistas IstoÉ/Senhor, Veja, Vip, Carta Capital e Caros Amigos. Editora do site Socialista Morena. Autora dos livros Zen Socialismo, O Que É Ser Arquiteto e O Que É Ser Geógrafo

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O dia em que um rabino esteve com Lula na prisão –e a confissão que ele ouviu

Cynara Menezes, do Jornalista pela Democracia, fala sobre o livro Lula e a Espiritualidade e relata uma passagem da obra sobre a visita do rabino Israel Jayme Fucs Bar ao ex-presidente Lula na prisão, o único rabino do Brasil que aceitou ir até Lula. “'Pedras e flores me foram lançadas. Até ameaças recebi. Das pedras, construí uma forte morada, e das flores, fiz um lindo jardim', escreve o rabino"

Rabino Israel Jayme Fucs Bar, Mauro Lopes e Lula (Foto: Ricardo Stuckert)
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Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena e para o Jornalistas pela Democracia -

O jornalista Mauro Lopes reuniu no livro Lula e a Espiritualidade textos de religiosos que foram levar conforto ao ex-presidente em sua cela em Curitiba ou que teorizaram sobre a ligação de Lula com a espiritualidade. Há desde padres católicos até monges budistas, passando por mães e pais de santo, muçulmanos e pastores evangélicos: Leonardo Boff, a monja Coen, Frei Betto, Adriana de Nanã, padre Julio Lancelotti…

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É uma obra sensível e delicada, que faz vir a memória o livro Fidel e a Religião, de 1985, resultado de mais de 20 horas de conversas entre Frei Betto e o líder cubano sobre religiosidade e espiritualidade. A principal diferença é que não é Lula quem fala de religião e sim o oposto: religiosos falam da espiritualidade de Lula. O próprio Frei Betto aparece como entrevistado (de Mauro Lopes) e não entrevistador.

“Lula sempre foi aberto ao diálogo inter-religioso e nunca teve preconceito contra qualquer manifestação religiosa”, diz o dominicano. “Em suas campanhas presidenciais várias vezes participei de Comitês Religiosos que congregavam lideranças de várias crenças. E as visitas na prisão (fiz duas) tinham um amplo leque de profissões religiosas.”

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Mauro idealizou o livro como uma espécie de registro do mergulho interior de Lula, potencializado pelas perdas da mulher, do irmão e do neto, e pelo isolamento dos 580 dias de cárcere. “A solidão que me foi imposta fez de mim um ser humano melhor. Rezei, meditei, mergulhei numa jornada de autoconhecimento. A comunhão comigo mesmo renovou minha esperança e minha crença no ser humano”,  diz o ex-presidente na apresentação.

O jornalista contou que, um ano após a prisão, entrevistou Leonardo Boff para seu canal no youtube, Paz e Bem, e o teólogo falou sobre como o petista apontou esta descoberta como uma das coisas que o sustentaram na prisão: a convicção de sua inocência; o “bom dia, presidente Lula!” que apoiadores diziam cotidianamente ao megafone na vigília em frente à Superintendência da PF; o sonho de retomar as caravanas e ajudar a recolocar o país nos trilhos. “E, por fim, a espiritualidade que me faz sentir Deus do meu lado e eu, como quem está na palma de sua mão”.

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Reproduzimos com exclusividade um dos artigos mais tocantes do livro: o relato do rabino brasileiro radicado em Israel Jayme Fucs Bar sobre como deixou o kibbutz onde vive em Jerusalém para visitar Lula em Curitiba, em setembro do ano passado, na véspera do Yom Kupur, o “Dia do Perdão” da tradição judaica. Fucs contou que nenhum outro rabino residente no Brasil aceitou o convite para ver o petista na prisão, com medo de virar alvo de críticas.

“Pedras e flores me foram lançadas. Até ameaças recebi. Das pedras, construí uma forte morada, e das flores, fiz um lindo jardim”, escreve o rabino.

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Confira.

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Um encontro na véspera do Yom Kipur
Por Jayme Fucs Bar

Kibbutz Nachshon, Israel

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Depois de um dia longo de trabalho, recebo uma mensagem do amigo Michel Gherman.

Michel: “Oi, Jayme, está por aí?”

Eu respondo que sim.

Michel: “Tenho uma pergunta”.

Michel, sempre muito direto, bem no estilo dos israelenses, me pergunta: “Você concordaria em visitar o Lula na prisão como rabino?”

Eu me surpreendo com a pergunta: “Como assim? Não há rabinos no Brasil que possam visitar o Lula na prisão?”

Michel: “Claro que há, mas todos têm medo de críticas”.

De acordo com o meu conceito judaico monoteísta maximalista, o rabino tem o dever de procurar trazer luz e conforto espiritual a todos os necessitados, independentemente de quem sejam. Toda pessoa em momentos de grande sofrimento precisa de quem a escute sem julgar, que somente ouça e profira palavras de conforto e esperança. Em suma, visitar um preso ou um desamparado é sempre a obrigação de um rabino.

Aceitei o convite, pois acredito que estaria ali representando uma grande massa de judias e judeus democráticos, humanistas e progressistas, que apoiam esse ato humanitário.

Não seria uma escolha, mas sim um dever.

“Michel, eu tô nessa!”

Peguei o avião para o Brasil no dia 16 de setembro de 2019 para me encontrar com o Lula na prisão no dia seguinte. Era véspera de Yom Kipur. E isso me levou a pensar muito no que chamamos de acaso ou coincidência e de como nada sabemos sobre os mistérios da vida e do mundo.

Lá vou eu para Curitiba me encontrar com o Lula, acompanhado de uma delegação de uns 35 judeus e judias de vários Estados do Brasil e de diversas organizações sociais e vários segmentos partidários. Senti como se voltasse aos anos 70 quando ainda vivia no Brasil, era ativista do movimento estudantil no Rio de Janeiro e pertencia a uma célula da organização DS (Democracia Socialista), que atuava na formação do Partido dos Trabalhadores.

Dos integrantes dessa delegação, eu conhecia somente a querida Patrícia Tiommo Tolmasquim, grande ativista pelos Direitos Humanos. Ficamos todos no lobby de um hotel e, de forma espontânea, fizemos um pequeno midrash (estudo da Torá), onde falamos da origem do Yom Kipur na Torá e do pecado do bezerro de ouro.

Chegamos juntos ao local marcado via transporte público. Lá fui recebido pela Polícia Federal e levado a uma sala especial. Após uma rápida vistoria e algumas informações básicas, fui conduzido a outra sala, de onde seria conduzido ao local em que estava o Lula. A vida é sempre uma caixinha de surpresas e aconteceu algo curioso. Um dos agentes da Polícia Federal me convidou até a sua sala, me pediu para sentar e disse: “O senhor rabino vive num kibbutz, não é?” Estava claro que haviam feito um bom levantamento sobre mim, respondi: “Vivo num kibbutz desde que cheguei a Israel”. Ele sorriu com certa intimidade e me confessou que antes de se formar em Direito, viveu num kibbutz por seis meses e que esse foi um dos melhores momentos de sua juventude. Falei que o mesmo acontecera comigo e que, por tal motivo, decidira morar em Israel. Ele confessou que desejaria um dia voltar lá com a mulher e os filhos. Apertamos as mãos como dois bons kibutznikim e logo dois agentes vieram ao meu encontro. Subi uma escadaria até chegar à prisão onde o Lula estava.

Entrei e me apresentei: “Meu nome é Jayme Fucs Bar”. Para quebrar a formalidade, rapidamente acrescentei: “Sou um rabino vermelho” e o abracei fortemente. “Este abraço não é somente meu, mas de milhões de brasileiros que apoiam e rezam por você”.

Sei que vocês estão na maior curiosidade de saber o que se passou lá, mas é impossível relatar tudo nestas poucas linhas. Além disso, não posso falar dos assuntos mais pessoais. Na verdade, quase não falamos de política. Porém, posso dizer que falamos muito sobre os judeus e Israel. Lula expressou sua enorme admiração pelo estado de Israel e disse que essa admiração é bem anterior à sua época de presidente. Em suas duas visitas a Israel, uma como líder sindical e outra como presidente, dois locais ficaram até hoje marcados em sua memória. O kibbutz e o Museu do Holocausto Yad Vashem. Dos vários lugares que visitou no mundo, nada lhe parece mais comovente e arrepiante que o museu que conta a história do Holocausto. Para Lula, o mundo deveria estudar e conhecer a história do povo judeu e sua força de sobrevivência.

De forma bem descontraída, ele revelou: “Fico muito triste porque tem gente aí falando que eu não gosto de Israel nem dos judeus. Como podem dizer algo assim de mim? No museu da diáspora em Tel Aviv, descobri que tanto do lado de meu pai, da Silva, como do lado de minha mãe, Ferreira, tenho origem judaica”. E para fortalecer sua afirmação, complementei: “E ainda por cima, você veio do interior de Pernambuco!”

Lula discorda do setor da esquerda que nega a existência de Israel. Ele me emocionou ao se expressar da mesma maneira que nós, judeus progressistas da esquerda sionista, nos expressamos: “Dois povos, dois países”. Ou seja, um estado judeu ao lado de um estado palestino.

Lula demonstra uma grande mágoa pela demonização de sua imagem em relação a Israel e aos judeus. Ele me contou que nos momentos mais difíceis pelos quais passou no período sindical, em que foi perseguido, encontrou amparo, apoio e até mesmo refúgio com os judeus progressistas.

Contei a ele que estamos na véspera do feriado judaico de Yom Kipur, momento especial em que temos a oportunidade de parar e jejuar, a fim de refletir e pedir perdão a nós mesmos e aos que estão ao nosso redor. Citei uma frase do sábio Rambam (Maimônides): “O Yom Kipur é uma data de arrependimento para todos, para o indivíduo e para a comunidade. É o tempo do perdão para Israel” (acrescentei “e para o Brasil”). Todos devem se arrepender e confessar seus erros em Yom Kipur.

Parece que Lula entendeu minha mensagem e me fez uma confissão que considero importante relatar. Ele disse que ainda tem um sonho a realizar; sabe que fez muito pelo Brasil, mas que ainda não conseguiu cumprir totalmente o seu legado de dar ao povo humilde a dignidade merecida e o simples direito a educação, saúde e bem-estar social.

Foi então que ele abriu seu coração, exatamente como se deve fazer em Yom Kipur: “Com toda a experiência que acumulei em meus dois mandatos como presidente do Brasil, sei que devo e posso corrigir os erros do passado para poder cumprir o meu sonho de transformar o Brasil  num país em que haja dignidade para todos”.

A porta se abriu e me pediram educadamente para me despedir, pois o tempo da visita estava encerrado. Olhei para o ex-presidente, preso naquele lugar frio e cinzento, e me lembrei de Yakov que apelidou seu filho Yeuda de “Gur Aryeh” ou “jovem leão”. Talvez Yakov soubesse ou pressentisse todos os obstáculos que seu filho venceria no futuro.

Abracei Lula mais uma vez e disse: “Lula, seu nome em hebraico é Arieh (Leão)”. Ele obviamente não entendeu, mas já não havia mais tempo para explicações.

O mesmo agente da Polícia Federal da chegada me acompanhou até a saída. Logo fui recebido por muita gente munida de câmeras, filmadoras, bandeiras etc. Senti que eu teria que dizer algo. Não me lembro muito bem das minhas palavras, entretanto a frase que me ficou marcada desse encontro foi: “Lula é amigo dos judeus! Lula é amigo de Israel!”

O resto eu já esperava. Pedras e flores me foram lançadas. Até ameaças recebi. Das pedras, construí uma forte morada, e das flores, fiz um lindo jardim.

Como diziam os sábios do Talmude “O dia de hoje jamais acontecerá novamente, mas uma boa ação pode fazê-lo durar para sempre”.

Jayme Fucs Bar é rabino secular Humanista. Brasileiro, vive em Israel no Kibbutz Nachshon

*Capítulo do livro Lula e a Espiritualidade, organizado por Mauro Lopes, Editora 247/Kotter. Para adquirir um exemplar, clique aqui.

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