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Adriana Coelho Saraiva

Doutora em Ciências Sociais pelo centro de Estudos Latino Americanos –ELA / UnB. Analista em Ciência e Tecnologia – Senior do CNPq

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O Dilema das Redes: tecnologia, controle e capitalismo digitalizado

Refletir sobre as questões que O Dilema das Redes evoca, nos leva à desconfortável sensação de que o problema que ora enfrentamos é ainda mais grave e de mais complexa solução. Precisamos encarar estruturas profundas de nossas sociedades, de nossos sistemas econômicos, políticos, sociais e psíquicos, para além dos meios de comunicação que utilizamos

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O badalado documentário ”O Dilema das redes” deixou, a todas que o assistimos, a incômoda sensação de estarmos sendo arrastadas, inexoravelmente, a um caminho obscuro e solitário, conduzidas por desejos compulsivos a um mundo polarizado, no qual somos tratadas como peças de um jogo de xadrez previamente arquitetado, cujo único objetivo é tornar-nos meros produtos consumíveis.  

Construído com base em depoimentos de ex-funcionários e ex-CEOs e até (ex?)investidores de empresas como Facebook, Instagram, Google e Gmail, entre outras, o documentário aborda questões palpitantes, que derrubam definitivamente a ilusão de muitos de nós, que há bem pouco tempo atrás chegamos a conceber tais meios como possibilidades de furar o bloqueio de informação, manipulação e aprisionamento, advindos das mídias corporativas tradicionais e com isso gerar possibilidades mais democráticas de mundo.

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Assim, a conquista insidiosa de nosso tempo, atenção, corações e mentes, condicionados por padrões de comportamento viciado, é dissecada no vídeo, demonstrando como o usuário – nós – somos capturados por dinâmicas subliminares e ilusionistas de fixação da atenção; como vamos sucumbindo, pouco a pouco, ao enclausuramento em uma dimensão etérea e particular, em que a vida real, os contatos reais, a presença real, o aqui e agora, vão perdendo gradativamente a importância e o significado. A ‘’realidade’’ passa a ser, dessa forma, redesenhada a partir da bolha em que se transita, delineada cuidadosamente por timelines personalizadas, encarregadas de construir um mundo sob encomenda para cada ‘usuário’. “A cada um a sua verdade”, eis um possível fator que contribuiu para o surgimento de fenômenos contemporâneos que tanto nos tem atormentado: a polarização, as fakes news, as teorias conspiracionistas (ou ao menos, sua ampla disseminação) e os demais monstros que vem assombrando o mundo iluminista que até então conhecíamos.

Sem adentrar aqui nas questões tratadas pelo documentário, é possível afirmar que o quadro exposto no Dilema das Redes é aterrador. Deformação da psique infanto-juvenil, manipulação, distração dos problemas reais, sensação ilusória de ação no e para o mundo, caos, polarização, ameaça às democracias, guerra civil, são todos apontados como consequência da atuação desses meios de comunicação na sociedade global. A despeito de seu inegável impacto, entretanto, o documentário deixa a sensação da falta de elementos que possibilitem compreender o problema em sua amplitude. Sem minimizar os efeitos deletérios relatados sobre a psique e comportamento humanos - contra os quais devemos empreender esforços de esclarecimento e regulação, vale tentar desenvolver esses aspectos.

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Sabemos que os meios de comunicação e as sociedades têm forte e indissociáveis vínculos e que, ao longo do tempo, as mesmas sofrem os impactos dos avanços – ou restrições, em seus sistemas de comunicação. Sabemos também que, a exemplo do ocorrido no decurso da década de 1920 – quando o fascismo se espraiou pelo mundo, fortemente associado às então recentes tecnologias de comunicação de massa (à época, o rádio, o cinema falado e a incipiente televisão), o impacto dessas mudanças tecnológicas pode ser até mesmo desastroso, mas não constitui um processo nem tão recente, nem tão linear e inexorável como os autores do documentário querem fazer crer. 

Voltemos às redes sociais e às perguntas que surgem a partir de sua abordagem nO Dilema das Redes. É possível dizer que o modelo de negócios das redes sociais é incompatível com a sociedade na qual vivemos? Ou seja, o modelo em questão e seus mecanismos de manipulação e controle, não seriam o desdobramento natural de uma sociedade pautada por um capitalismo avançado, financeirizado, imaterial e alienante, cuja principal fonte de riquezas passou a se constituir a partir da própria digitalização? E o que dizer dos efeitos apontados (como polarização, manipulação, alienação), seriam estes real e exclusivamente advindos de seu uso? O que de fato sustenta essa forma de psique, de construção de desejos e afetos, de uma cultura e prática social que as redes engendram mas que, por sua vez, também engendrou as próprias redes sociais? 

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Se examinarmos bem, os impactos das redes sociais são a consequência natural do aprofundamento desse sistema econômico e social, que valoriza a dimensão técnica como elemento galvanizador da crescente concentração de poder e riquezas, em detrimento de suas possiblidades humanistas. Reflete - e estimula, claro - uma sociedade que, como um todo e em suas mais profundas dimensões, sustenta-se no crescente individualismo, isolamento e intolerância social. 

Indo além, o caos e a ameaça de guerra civil, que agora (e mais uma vez) assombram a sociedade estadunidense – como tem ocorrido com muitas outras - não são forjados essencialmente por meios de comunicação social, embora possam ser por eles estimulados ou reforçados. O caos e a guerra civil surgem como um resultado quase natural em uma sociedade distópica, pautada por desigualdades extremas e competição acirrada; por preconceitos e diferenças que embasam a formação de ‘castas’ e/ou privilégios; por um mundo que se fragmenta mais e mais, dispersando laços comunitários e subtraindo direitos essenciais à sobrevivência humana. Os meios de comunicação aqui espelham e estimulam o percurso dessa sociedade. 

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Diante de tudo isso, entretanto, há fatos inexpugnáveis: as redes sociais, da forma que estão construídas, de fato permitem o acesso a um mundo de informações que se converte imediatamente em poder – e há, sem dúvida uma lógica de direita, ultraneoliberal a governá-las. Essas questões vêm sendo devidamente abordadas por perspectivas que definem o atual estado de coisas como ‘’sociedade do controle” ou ‘sociedade da vigilância’, entre outras expressões já clássicas. Além disso, não restam dúvidas de que o advento desses aplicativos nos levam um passo largo adiante, rumo à precarização humana que o sistema econômico em que vivemos tem forjado em todas as dimensões, há já algum tempo. De relações de trabalho a direitos sociais, passando pela precarização das próprias relações humanas e afetivas, estas frontalmente atingidas por formas voláteis de (vi)ver o mundo líquido coisificado, e agora afetadas por uma gama de aplicativos, inclusive aqueles voltados especialmente ao (desen)encontro. Tudo, absolutamente tudo, vem sendo estilhaçado pela máquina de moer corações e mentes do capitalismo ultradigilizado.

Como vamos lidar com esses poderes e perigos, impondo-lhes limites cruciais à nossa sobrevivência autônoma? Como construir e ampliar visões críticas que atenuem ou se contraponham ao impacto dessas tecnologias sobre nossas vidas? É possível subverter – por dentro? - mais esse poder que nos aprisiona e consome? São interrogações às quais não podemos mais nos furtar.

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Refletir sobre as questões que O Dilema das Redes evoca, nos leva à desconfortável sensação de que o problema que ora enfrentamos é ainda mais grave e de mais complexa solução. Precisamos encarar estruturas profundas de nossas sociedades, de nossos sistemas econômicos, políticos, sociais e psíquicos, para além dos meios de comunicação que utilizamos. 

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